Sirius (NASA)

Arrumei tudo com o cuidado dos apaixonados: estendi a manta sob a árvore, juntei os gravetos para a fogueirinha, comprei um litro de vinho da pior qualidade pois não tinha dinheiro e nem o refinamento de sommelier e levei a gaita para fazer o fundo musical.

O cenário estava armado para uma noite estrelada no pasto do colégio agrícola. A lua levantava pelo lado direito, pelas bandas do estábulo, e minguante, não ofuscava minhas segundas e terceiras intenções.

Convidara uma das meninas mais doces da pequena cidade de Mirassol, filha de família tradicional, para essa orgia sensitiva sob as bênçãos da juventude.

Sob a Alfa-Centauro, supus, iniciei meus versos de efeito, decorados de um livro de Fernando Pessoa que trazia ensebado, na bolsa.

Inacreditável. Os olhos da garota brilhavam sob a luz dos sóis. Primeiro ato completo e perfeito. Abro o vinho enquanto recito – de memória – o velho e conhecido poema de Bilac “Ora (direis) ouvir estrelas”:

“Ora (direis) ouvir estrelas! Certo
Perdeste o senso!” E eu vos direi, no entanto,
Que, para ouvi-Ias, muita vez desperto
E abro as janelas, pálido de espanto…
E conversamos toda a noite, enquanto
A via láctea, como um pátio aberto,
Cintila. E, ao vir do sol, saudoso e em pranto,
Inda as procuro pelo céu deserto.
Direis agora: “Tresloucado amigo!
Que conversas com elas? Que sentido
Tem o que dizem, quando estão contigo?”
E eu vos direi: “Amai para entendê-las!
Pois só quem ama pode ter ouvido
Capaz de ouvir e de entender estrelas.”

 A face da garota refletia o leite da via láctea, tão pálida…distante…e bela…

Antes de dar início ao terceiro e penúltimo ato – havia ensaiado Stevie Wonder na gaita e meu sangue fervia de ansiedade – deito ao lado da garota e começo a dar nomes aleatórios às estrelas com a certeza de um Nicolau Copérnico:

– “Aquela é Canopus (chutava)… aquela é a constelação de Andrômeda (supunha)…

– Segurava as mãos geladas da menina e apontava na mesma direção aleatória (e errada) dos astros por mim citados. O momento alcançava o clímax das intenções e minha pureza juvenil e romântica chegava ao êxtase. É evidente que meu verniz de literato e de astrofísico encobria o ronronar de um felino – recém desmamado, tinha lá meus 19 anos…

Quando toco o doce corpo da jovem namorada – que continuava pálida sob o leite das estrelas – talvez bêbada com o vinho da pior qualidade, talvez estupefata com meu conhecimento estelar – ouço um som que interrompe a harmonia campestre. O ruído, meio oco, deveria ser de um ruminante próximo dali, ou soprado pelo vento da direção do estábulo.

Odiei esse boi maldito que mugira na hora do pulo do gato… reenlaço o corpinho da namorada – com a delicadeza de um jovem apaixonado mas cheio de zelo – a menina era virgem, ou pelo menos dizia que era – ouço novamente o ruído, meio oco, meio abafado e digo a ela:

– Tem um boi, uma vaca, mugindo aqui perto…

Ela, com aquela cara branca descrita de via láctea, com uma palidez que agora reparara, exagerada, uns dois olhos negros arregalados como em suplício diante de uma provável paixão juvenil, talvez excitada e, pronta para o amor natural em meio ao pasto verdejante, me responde, assim seca, sem doçura:

– Não foi boi, não….eu peidei, quero voltar pra casa e cagar; não consigo fora de casa…

Meu Olavo Bilac, minha Via Láctea, de forma abrupta e sem meias palavras, foram engolidos por um buraco negro lá pelos lados de Cassiopeia.

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