Por Paulo Atzingen 

Sim. O poema feito às pressas fora premiado. Preferia o outro, produzido nas noites de insônia, carregados de dúvidas e alucinações de diálogos com Guimarães Rosa dentro de uma canoa na terceira margem; essa margem incógnita que não se compreende em juízo perfeito e se teima não compreender, pois ela fere o orgulho hipócrita do mundo. Sarges andou pelas ruas na noite que antecedia a cerimônia de entrega dos prêmios, descontando vantagem, bebendo além da conta, e se ufanando diante das notas insignificantes que os rodapés dos jornais traziam. A vontade de esnobar o resultado era grande; explicar aos amigos dos bares a riqueza dos seus versos premiados, porém, sua consciência delatava-o, sabia como eram paupérrimos. Agora sim, diziam, o seu primeiro passo para imortalidade, transcendência definitiva destes currais quadriláteros para as esferas celestiais; Nirvana, Paraíso, Krishnaloka, sei lá.

Sábado veio lento, mais sim. O apito de uma fábrica distante avisou-lhe que o sol era verdade e ele, quase no olho do furacão de si mesmo, voou da cama para a rua. A possibilidade da fama subia-lhe da planta fria dos pés, ao infernal calor da mente e dos olhos, descendo depois para o coração. Parecia-lhe um filme sempre esperado, ele subia. Foi até o edifício da amiga tomar sol para bronzear o narciso que o acompanhava desde quando, em algum lugar da infância, alguém havia falado que ele era belo. Lá do alto via a cidade diminuída, e a circunferência azulada do mundo tomava-a como uma nave ancorada no continente. Aquela cidade em seus ciclos, pensava o turista, arrancava com a pá da história o mineral, o cimento, a cal, o húmus, o verbo, a lógica, a religião e a poesia e se edificava. Quantas casas ele via, quantos prédios, quantas vias, quanta vida dentro e fora, indo, nascendo, subindo, comprando, florindo, morrendo. Enquanto isso, ele subia também, achando que se edificava, construindo poemas ridículos, erigindo arranha-céus de orgulho e vaidade. Um simples e mero viajante que se detém na superficialidade das coisas. Talvez a sua origem paupérrima o empurrava para o alto, para que de uma forma ou de outra pudesse negar tudo aquilo que lhe faltava em essência, mas lhe sobrava em pretensão e arrogância. Via a ruazinha com seus casebres pardos e amontoados e máquinas de ferro comendo a terra do espaço vazio onde seria construído mais um conjunto de saletas elegantes que se chamariam lares; ele não falava nada disso em seu poema; via solidão e multidão superpostas, miséria e alegria juntas, terrenos onde seriam construídas praças davam lugar a edifícios de corporações, escola eram substituídas por construções de totens envidraçados, recheados de aço, concreto e isolamento. Ele não falara nada disso no poema. Sentia-se frustrado com sua indiferença e superficialidade. Ele que viajara tanto, aprendera tanto, vivera tanto, não conseguia ser fraterno nem em contar a sua parca riqueza de viajante.

E a noite daquele sábado, longo e carregado de ânsia tombou sobre o dia. A solenidade ia ter início. Era uma noite abafada de verão tropical. A agremiação dos imortais dava uma chance aos que inevitavelmente padeceriam sob os sete palmos, até que os vermes se saciassem e se putrefizessem com o calor do amoníaco da terra. Sobre o palco do teatro, mesa ornamentada com fitas e flores rápidas, bustos futuros sentados em seus respectivos lugares, com uma iluminação General Electric refletindo o gel das cabeleiras mais vaidosas. A forma apurada de uma sociedade de simulacros vivia seu êxtase. Acomodou-se numa das poltronas da frente, mas logo alertaram de que aquele lugar estava destinado a uma personalidade notável e oficialmente reconhecida. Sentou junto à escada que dava para o grande tablado. Podia ver dali toda a plateia, e perceber que vivia num tempo e numa civilização que ainda viria-a-ser; onde torres de argamassa e marquises de ego serviam de embalagens para anéis preciosos que se davam, e depois se quebravam. Sentia-se triste e uma vontade de se isolar. Na casa não cabia mais gente e, afinal, o diretor geral da agremiação dos literatos deu início à cerimônia. Agradeceu aos presentes obedecendo uma conhecida hierarquia. Fez calorosos elogios a todas as instâncias dos poderes locais, provinciais e nacionais e a seus respectivos oficiais e assessores que ali as representavam. Direcionou obséquios aos jornais e redes de comunicação que se faziam presentes; pediu uma salva de palmas ao bispo que inexplicavelmente fazia-se notar em um dos camarotes superiores. E, finalmente, em meio ao mais puro silêncio, os poetas foram chamados:

-Elioá!

Este nome lhe emprestou mais agonia e desconforto, pois lembrava Cristo na cruz. Como aplaudiam desesperados, também aplaudiu, e imaginou que todos ali haviam estudado aramaico antes da sua língua pátria. O diretor, emocionado, entrega diploma e medalha ao poeta. Em seguida, outro envelope anuncia o terceiro colocado; suspense e silêncio:

– “Evanir!” – chamaram pelo pseudônimo. Mais aplausos, assobios e alegria em todo teatro. Este poeta vencera alguns concursos pelo órgão em que trabalhara. Seu poema “A convenção” teve destaque numa das páginas do diário do palácio, e o seu nome constantemente aparecia nos anais dos ministérios.

– “Este rapaz promete” – baforou o crítico estatal, núcleo do grupo contíguo, impressionando com seus comentários os que o acompanhavam. Subida de palco, medalha diploma, sorrisos e mais aplausos. O editor do jornal principal fez questão de tirar uma foto com o poeta. Estava acompanhado da Miss estadual. Chamaram, depois de longos minutos, o poeta Nuaci, o segundo colocado.

– “Nuaci!”

O nome ecoou no teatro, sem resposta. Ninguém sabia quem era. O holofote lambeu o ambiente, passando sobre a plateia silenciosa, que esperava o seu próprio manifestar. Um vulto, finalmente, pôde-se ver, se levantou do outro lado. Os olhares, desviados do palco, do diretor e dos coordenadores suados e ansiosos, se dirigiram para a pequena figura, que se apresentava. Parecia um menino de 10 ou 12 anos, franzino, delicado. Essa delicadeza surpreende a todos quando se dirige ao tablado. Há um aplauso por reflexo, indeciso, arrastado ao sair, e há inquietação, abanos e leques. E Nuaci avança, apoiado em muletas; admiração mistura-se com pontas de constrangimento, dentro de um aquário de pessoas e silêncio. Cidadãos enxugam o suor momentâneo que descia pelas testas. O minuto se arrasta, segundo por segundo, e Nuaci sobe os intermináveis oito degraus que levam ao palco, para depois atravessá-lo sob olhares de entusiasmo comedidos de compaixão. O tablado rangia quando os passos de Nuaci, que não eram, a bem da verdade passos, mas a vontade de seguir, prosseguir, extrapolavam seus limites, para ir além da posição ereta do homem. Aquele silêncio traduzia o sofrer que o acompanhava há décadas, e o seu continuar causava um acerto de contas momentâneo, uma espécie de sofrimento cedido naquele instante aos cidadãos medianos, para que sentissem o gosto da ausência, o sabor acre do vácuo, na dor, no sucumbir; e que sentissem o ressuscitar, e que sentissem o sobrevier. Nuaci dava de presente aos coxos de espírito a filosofia do padecer, e aos deformados de alma a poesia do silêncio. Ele chegara à mesa encarnando a dor dos verdadeiros poetas viajantes que vêem e sentem o mundo com dor e claridade.

Por fim, o diretor estendeu as mãos trêmulas entregando-lhe a medalha, e, emocionado, o cumprimentou. O projetor iluminava-o, porém suas muletas brilhavam mais; a plateia se manifestava, atônita e boquiaberta. Nuaci cumprimentou os homens que seriam adorados no século seguinte e, finalmente, se voltou encarando o público com um sorriso tímido, amarelo, mas lúcido. Ele sabia que era aquele o seu momento. Nuaci foi aplaudido, muito aplaudido. Mas esse aplauso foi diferente de todos os outros aplausos, e durou mais. Todos de pé, aplaudiam Nuaci, o poeta anônimo com suas muletas reluzentes. Todos, do funcionário triste ao organizador preocupado, dos poetas principiantes aos contadores de números, dos mortais agregados à gravidade aos imortais que assim se consideravam, dos deuses de Olimpo aos belzebus do purgatório. Todos, com aqueles aplausos, queriam dizer alguma coisa a Nuaci. Não queriam dizer apenas “Parabéns poeta”, queriam abraçá-lo, cumprimenta-lo, agradecer. Queriam dizer obrigado ao poeta completo; de alguma maneira havia um agradecimento e um certo conforto no ar.

Quando chamaram o primeiro colocado, Sarges, o turista encarnado, enfurnou-se na poltrona como anestesiado. Lembrou de seu poema premiado; era ridículo. Mais uma vez, sentia-se frustrado com sua indiferença e superficialidade. Ele que viajara tanto, aprendera tanto, vivera tanto, não conseguia ser fraterno nem em contar a sua parca riqueza de viajante. Mas reagiu. Fortalecido, levantou-se. Um aplauso estrondoso começou. Observava Nuaci, o poeta verdadeiro, das muletas reluzentes, que descia da ribalta. Foi até ele, abraçou-o, beijou-o como um grande irmão das letras e, ao invés de subir os degraus do palco, atravessou todo o teatro, foi até a porta, e saiu.

(Belém do Pará 2002 – São Paulo – 2007) 

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