“Está soprando no vento”

Cheguei em frente à casa de Joana D’Arc cinco minutos antes do horário combinado: seis horas. O caminhão leiteiro da fazenda do pai de Joana chegava no mesmo endereço. Vinha batendo seus latões vazios despertando a cidadezinha em pleno domingo.

A testa da casa de Joana tinha traços de morada colonial, com eira, beira e ribeira, janelas em madeira negra com duas águas enormes e uma calçada com pedras portuguesas. Na noite anterior não consegui observar praticamente nada além do que preenchia a moldura da janela. O silêncio da madrugada voltou depois da parada do caminhão e da sinfonia dos latões leiteiros na carroceria. Ouço uma fieira de sons secos iguaizinhos a passos sobre o assoalho vindos em direção à grande porta de angelim. Após o característico som de chave em porta antiga essa se abre em câmara lenta e salta em meio a parca luz da madrugada o reflexo de duas muletas – sim, duas colunas de metal reluzente que sustentavam o corpo de Joana D’Arc. A bela moça tinha a parte inferior de seu corpo todo rendilhado por ligas metálicas e, somadas às muletas, usava duas botas ortopédicas que a ajudavam a manter-se em pé.

 

Fiquei sem ação e sem voz, surpreso e constrangido. Nesse lapso de segundo minha arrogância de jovem garanhão levava um coice na testa. Cambaleei, meu bom dia saiu esgarçado, inaudível. Na noite anterior, à janela, via a parte superior da mulher, no peitoril, jamais teria imaginado – com toda imaginação à época – que Joana era paraplégica.

Subimos à cabine do caminhão, auxiliados pelo motorista que a içou enquanto eu resgatava o par de muletas que ficara escorado nas rodas do veículo. Não havia explicações a dar, tudo estava ali, em azul marinho e dourado, as cores da aurora. Eu era um jovem impulsivo e emotivo que agia e falava sem pensar, mas uma espécie de compaixão alagou meu peito – tomando o espaço de meu egoísmo e individualidade juvenil. Após o coice e o espanto meu lado dócil e gentil começou a funcionar. Aquele quadro que se formava à minha frente parecia a continuação de um sonho maluco que tivera à noite, na casa de meu irmão Nelson. Sonhara que atravessava uma estrada entre cachoeiras e montanhas na cabine de um caminhão com uma figura mística ao meu lado, uma espécie de santa que cantava um hino sacro longínquo, imemorial.

– “Posso tocar na gaita Blowin’ In The Wind, do Bob Dylan?”, perguntei no momento que o motorista Abraão engatava a segunda entrando na estrada de terra de Minas. Ela abriu um sorriso hipnótico e disse que sim.

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