Na pocilga da fazenda

Um peão de fazenda parou a charrete em frente à casa. Joana dispensou o cocheiro e perguntou se eu queria conhecer as terras que ia herdar, flertando com o pai e comigo.

– “pai vou mostrar minhas terras para ele…” Pensei que fazia parte do repertório de bom humor da moça blefar com os visitantes. Mas não. Ela era filha única e na ausência do pai ela era a única herdeira mesmo.

O relevo da fazenda era de uma planura impar diferente da média mineira salpicada de morros e montanhas. Praticamente tudo se via, com uma esticada de olhos, exceto a área mais colada à lagoinha, uma baixada circundada por um bambuzal e a grande granja de porcos para onde Joana me levava. A casa principal da fazenda ficava no centro da propriedade; uma estradinha levava à parte mais alta das terras, fazia um grande volta, passando por uma capela em estilo gótico com torres escuras e um telhado que parecia escamas de peixe.

“Meu pai me ensinou a rezar naquela capela,” disse-me Joana no controle das rédeas da charrete.

“O seu nome te pesa?” perguntei meio de improviso. “Muito, quase 1000 quilos”, respondeu-me com uma aura de espiritualidade em sua hipérbole. “Estudei toda a história de Joana D’Arc. Ela foi guerreira, batalhou contra os ingleses, foi vendida ao duque de Luxemburgo, foi acusada de herege, julgada e condenada”, enumerou a jovem, enquanto conduzia a charrete pela estradinha de terra, contornando o lago salpicado de pássaros e patos.

“Você sabia que Joana D’Arc foi queimada viva com apenas dezenove anos?”, perguntou-me. Disse-lhe que essa era a parte da história que conhecia. Minha resposta animou-a, enquanto entrávamos na granja. “A cerimónia de execução aconteceu na cidade francesa de Ruão, em 1431. Suas cinzas foram jogadas no rio Sena para que não se tornasse objeto de veneração pública”, contou-me.  “Ela foi morta virgem” – emendou.

A jovem moça paraplégica havia aproveitado todo o tempo que poderia estar nos bailes e nas baladas de sua geração para estudar a história daquela que inspirou seu pai a nomeá-la. Da sua boca saia um hálito doce acompanhando as palavras que bailavam obedecendo a marcha do cavalo e o fluxo do ar:

“Ela foi beatificada em 18 de abril de 1909, na igreja de Notre Dame de Paris pelo papa Pio X e canonizada em 16 de maio de 1920, na Basílica de São Pedro, em Roma, pelo Papa Bento XV”, disse-me de memória. Essa volta no lago que durou cinco a seis minutos me deixou esperto. A Jovem possuía uma memória privilegiada, admirável.

Chegamos a entrada de uma das pocilgas e ajudei-a a descer da charrete. Explicou-me sobre os turnos dos funcionários, das raças de suínos que criavam, dos tipos de ração e suplementos que ofereciam aos animais e todos os cuidados necessários para a saúde dos bichanos.  Os roncos e os guinchos tomavam conta do ar. Os porcos sentiam, por instinto, a presença de sua dona.

Joana era uma concentração de bons sentimentos em um pequeno frasco de perfume. Sua aparência frágil era composta de dois elementos que não se fabricavam mais: bondade e inocência. A isso se somava uma beleza física própria de uma princesa com boa ascendência e uma criação com todos os mimos e cuidados. Eu, ao contrário, tinha uma malícia e um sentimento pervertido, era irônico e sarcástico.

Ela abriu o cadeado da baia onde estavam as porcas que haviam parido naquele dia. Uma vara de 20 bacorinhos mamavam simultaneamente, alguns embaixo da gorda mãe porca.

– Joana, posso te dizer uma coisa? Perguntei e ela, olhando-me pela primeira vez de uma forma mais intrigante, misteriosa, consentiu.

“Não gosto de suínos, não gosto de porcos, não gosto desse negócio. Aceitei fazer o curso porque meu irmão me deu de presente. Não soube recusar. Não sei dizer não…” de um jato, desabafei toda chuvarada de verdades que me falava o coração. Ali mesmo, dentro da pocilga, entre porcas parindo e porquinhos mamando, entre roncos e guinchos…

Ela olhou-me com a palidez característica de quem se decepciona e se sente traída. Seus olhos negros e sua face branca ganharam mais nitidez naquele momento. Deu dois passos à frente e levantou uma das muletas – me protegi com as mãos pois pensei que ia ser espancado ali, em meio aos restos de placentas e sangue animal. Errei. Me abraçou, puxou meu corpo junto ao dela e lascou-me um beijo. Foi o beijo mais erótico e emporcalhado que experimentara até então.

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