por Paulo Atzingen*

Tenho poucas  imagens da primeira infância. Uma nuvem às vezes passa e me traz uns fiapos, uns retalhos de um filme apagado que em seguida se transforma em um cheiro misturado a um gosto de passado, mas que ficou guardado como uma essência. Em uma rua íngreme, de terra, ficava nossa casa de madeira, com uma grande escada também em madeira na entrada;  um terreno ao lado da nossa casa tinha uma árvore com raízes expostas e uma gangorra que ao invés de subir e descer, rodava, rodava, rodava, até nos deixar tontos. Dentro de casa, eu lembro, havia um móvel com pernas redondas, tal tacos de bilhar, era a radio-vitrola. Ali mãezinha cantava as músicas de época e onde fui apresentado a uns disquinhos coloridos que contavam histórias de uma cigarra e de uma formiga ou de uma festa no céu.

Na minha segunda ou terceira infância – na cidade grande – já adquirira alguma maldade no coração como esfolar a boca do cachorro do vizinho (atrás do muro, claro) com um cabo de vassoura, ou dizer que a empregada tinha cabelo bom-bril já assimilando o preconceito velado de um mundo de paulistanos pardos. Cantava músicas de protesto debaixo do chuveiro com a maior inocência e misturava nelas cantigas do sítio do picapau amarelo na sua primeira versão televisiva:

“Caminhando e cantando e seguindo a canção, somos todos iguais, braços dados ou não … rios de prata piratas, voo sideral na mata – universo paralelo, sitio do pica-pau amarelo..”.

Cantarolava versos de uma história que não participara diretamente mas me tocava por sua mensagem emocional: “pai, afasta de mim esse cálice, afasta de mim este cálice , de vinho tinto de sangue”.

Por sorte (ou azar não sei) não participei de marchas estudantis defendendo os direitos civis dos anos 60 e nem fui educado adequadamente às coisas do Espírito na década de setenta quando começava a ficar homenzinho. Eu era um bebê quando o AI-5 foi instalado no país e pude chorar sem nenhuma restrição ou censura. Peguei tudo pela rebarba ou tive que aprender por conta. Das próprias noções religiosas, herdei apenas um nome de apóstolo e tive, com o tempo, que criar o meu próprio discipulado. Meu pai foi penalizado pelo primeiro governo do regime e a encomenda de 200 quilômetros de dormentes para uma linha de ferro ligando São Paulo ao Mato Grosso foi cancelada pelo presidente- general, à época, Costa e Silva. Ter um pedido cancelado e daquele montante dói no bolso de qualquer um, mas é uma revolta menor do que ter um pai ou um irmão morto em guerrilha ou torturado por ser civil. E foi justamente isso o que não aconteceu comigo. Cresci sem revoltas, mas também sem regalias.

Arrependimento e amor

Sem dormentes, sem serraria, sem serraria, sem dinheiro. Os sonhos madeireiros de meu pai nos anos 60 migraram para o depósito de madeira em Pirassununga e degringolaram posteriormente a um trabalho burocrático e mal remunerado em uma distribuidora de madeiras em São Paulo.

Foi nessa época que eu aprendi minha primeira lição de respeito e uma outra lição de amor entre irmãos. Munido do primeiro ardil que se aprende para infernizar e tirar a tranquilidade dos outros, o bullying, provoquei minha irmã mais velha que havia tingido o cabelo da cor de burro quando foge. “Cabelo de burro quando foge, cabelo de burro quando foge”, eu gritava do outro lado da cozinha.  Ela fritava mandiopã e a mesa nos separava garantindo-me uma certa segurança para a fuga. Ela se virou furiosa, lançou a escumadeira contra minha testa de forma tão certeira e precisa que o sangue jorrou. O ódio que a movia se transformou em amor-instantâneo ao maninho, solúvel em água. Levou-me e lavou-me na pia do banheiro pedindo perdões. Guardei com isso uma indizível lição de respeito, arrependimento e amor. Éramos irmãos acima de tudo.

Meus irmãos mais velhos tiveram anos dourados de suas vidas sustentados por vigas e caibros resistentes da serraria de meu velho; a mim e a minha irmã mais jovem sobraram alguns retalhos de madeira, lascas e ripas.

Nos anos iniciais na metrópole paulistana tivemos a típica dureza dos retirantes que chegavam ao sul Maravilha para ganhar a vida. Vínhamos do Oeste tentar a sorte na mais vibrante e melancólica cidade brasileira.

Vejo em fotos antigas uma família alegre, bem vestida; Elizabeth tocando um acordeon e meus dois irmãos mais velhos enfiados em dois terninhos bem talhados. Sim, mamãe até então costurava “pra dentro” em sua máquina Singer e tinha todo o tempo do mundo em cuidar e amar sua prole.

Barco a vela pronto para seguir ao mar alto

Um barracão foi erguido no quintal de casa e mamãe chamou aquilo de sala de aula. A ideia pegou e ali ela fez muita gente feliz. Lembro da paciência de mamãe ao ensinar velhinhos a ler e a escrever dando uma rasteira no analfabetismo naquele perímetro paulistano. Essas aulas ajudavam no orçamento doméstico.

Foi um tempo recheado de alegrias simples e não tinha parâmetros do que era felicidade se é que existisse. Das aulas e os jograis no barracão de aula nos fundos de casa guardo uma boa saudade. Ali aprendi de tabela, ouvindo mamãe ensinando aos coroas, as primeiras noções de poesia. Mamãe usava os versos de poetas como Vinícius, Drummond e Bandeira para conectar-se à simplicidade dos velhinhos analfabetos e por mimetismo, me atingia (novamente) na fronte: no barracão dos fundos de casa declamei pela primeira vez um poema de Manuel Bandeira que se chamava Porquinho-da-Índia:

Quando eu tinha seis anos / Ganhei um porquinho-da-índia.

Que dor de coração eu tinha / Porque o bichinho só queria estar debaixo do fogão!

Levava ele pra sala / Pra os lugares mais bonitos, mais limpinhos,

Ele não se importava: Queria era estar debaixo do fogão.

Não fazia caso nenhum das minhas ternurinhas…

– O meu porquinho-da-índia foi a minha primeira namorada.”

Entrar no coração de um poeta aos sete ou oito anos de idade e declamar um poema ajudado por mamãe foi um sopro em um barco a vela pronto para seguir ao mar alto.

Meus dois irmãos mais velhos tomaram caminhos diferentes. Um, foi servir a aeronáutica, o outro, alguns anos mais tarde, foi embora para o Norte integrando as levas de estudantes universitários do Projeto Rondon, que tinha o lema “Integrar para não Entregar”.

Entre servir o exército brasileiro influenciado por meu irmão aeronáutico ou seguir a trilha de meu irmão estudante, preferi a mais arriscada.

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São Paulo, março-abril de 2020

*Paulo Atzingen é jornalista

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