Aos artistas latinoamericanos que tocam nas ruas*
por Paulo Atzingen
No metrô de São Paulo os artistas sobrevivem com a misericórdia que resta das pessoas e do brasileiro médio. Não sei quem mais precisa de ajuda, o artista ou o povo. Este anda em farrapos material e espiritual e têm recebido esmolas emergenciais que não comprometem os cofres públicos nem os altos salários do Brasil. Vivem assim não porque querem, não porque gostam, mas porque foi imposto a eles o trabalho, a luta e a sobrevivência no lugar de luxos, prazeres ou ócio. Não podem ir ao teatro, ao cinema e à alguma exposição de arte e o que lhe restam são apresentações assim, de improviso, com a força e a alma que só os artistas de rua possuem.
Nesses ambientes urbanos é que se percebe a sensibilidade das pessoas que mesmo tristes e preocupadas aplaudem e retribuem com sua última moeda os verdadeiros artistas de rua, que vão aonde o povo está.
Talvez não exista troca mais justa e perfeita do que esta: músicos, intérpretes, poetas, mímicos, trovadores, mágicos – que buscam no trem do metrô o alimento para sua família – e oferecem em troca comida iluminada para a alma, dando aos tristes e desesperados uma réstia de luz natural em um resto de dia.
O artista entra no vagão com seus instrumentos de trabalho, um charango boliviano, uma flauta zampoña e duas esperanças: a de conseguir tocar sem que um brutamontes de uniforme lhe prenda e a de tocar o coração do paulistano mergulhado em seu telefone celular, em seus problemas e indiferente ao mundo e ao caos da superfície.
O artista é um jovem com seus 25 anos no máximo, traja roupas artesanais feitas em algum tear nas fabriquetas clandestinas da periferia. Essa mesma periferia que abraçou os irmãos latinoamericanos que vêm a São Paulo na busca de trabalho e uma vida mais plena. Infelizmente a grande maioria desses irmãozinhos de cabelos lisos, de olhos pretos e esticados encontram a semiescravidão tropical.
Com a gentileza dos que têm a alma leve, o artista do trem pede perdão pelo incômodo e garante que depende do que faz para levar o sustento para casa.
Começa seu show instantâneo tocando a flauta andina que preenche os espaços do vagão e desperta do sono urbano os que ainda não o haviam notado. É um som profundo e que me atira no rosto – mesmo com o ruído das rodas do trem – um vento vindo dos Andes, saído do ninho dos condores que moram nas grandes altitudes. Empunha sua viola charanga e começa a cantar:
Solo le pido a Dios
Que el dolor no me sea indiferente
Que la reseca muerte no me encuentre
Vacío y solo sin haber hecho lo suficiente
Solo le pido a Dios
Que lo injusto no me sea indiferente
Que no me abofeteen la otra mejilla
Después que una garra me arañe esta suerte
Solo le pido a Dios
Que la guerra no me sea indiferente
Es un monstruo grande y pisa fuerte
Toda la pobre inocencia de la gente
Es un monstruo grande y pisa fuerte
Toda la pobre inocencia de la gente”
O artista retoma a flauta e se insere – e me coloca – novamente nas alturas do condor. Ele acerta o seu alvo aqui embaixo. Recebe aplausos e moedas e iça do fundo do poço o paulistano quase derrotado. Arranca do ventre da cidade homens e mulheres quase sem sangue e devolvem-lhe a cor e um novo dia.
Com a certeza de que em 50 anos pouco ou nada mudou, volto para casa cantando Mercedes Sosa:
“Eu só peço a Deus
Que a dor não me seja indiferente
Que a seca morte não me encontre
Vazio e sozinho sem ter feito o suficiente.
*São Paulo, dezembro de 2019 – (antes do início da pandemia)