Ou: Na estrada das areias de ouro
O trem que rasgava o sul da Bahia de ponta a ponta ia até Salvador, mas a economia rodoviária e a indústria de automóveis fez isso acabar.
por Paulo Atzingen
O avançar no quadrante daquela terra que um dia os cartógrafos denominaram de Nordeste era especial para um jovem paulista criado no asfalto e sob as lâmpadas urbanas de mercúrio. O agreste com suas reentrâncias de vales e escarpas tinha árvores ralas que lutavam para sobreviver embaixo da brasa do sol. Aqui, ali, apareciam povoados, umas casas sem reboco, uma capela, uma venda sem letreiro, quase tudo ainda por fazer ou, na pior das hipóteses, já feito mas destruído pelo tempo e pela quentura.
Era a mente começar a ficar árida com a paisagem que tudo mudava. Um vaqueiro tangia sua boiada gorda à beira da estrada e um pastor cuidava de suas cabras num campo mais verde. Pessoas acenavam para o trem, tiravam o chapéu, crianças mandavam beijos. Isso mudava minha paisagem interna. O agreste e o sertão eram apenas palavras que denotavam um estado de espírito ou algumas palmas de distância. Havia ilhas de vidas, de trabalho e de fartura, como um mar que esconde em sua profundeza os peixes. Açudes apareciam acompanhados de rios, artérias naturais que bombeavam o fio da vida para os vilarejos, para as corruptelas à beira da estrada de ferro.
A sinfonia metálica das rodas do trem que levavam minha imaginação para longe também traziam-na para perto e agora, sem explicação, uma cantiga do baiano e violeiro Elomar Figueira Melo, vinha-me à mente:
“Lá dentro no fundo do sertão
Tem uma estrada
Das areias de ouro
Por onde andaram
Outrora senhores-de-engenho
E de muitas riquezas
Escravos e Senhoras
Naquelas terras imensas
De Nosso Senhor
E contam que em noites
De Lua pela estrada encantada
Uma linda sinhazinha
Vestida de princesa
Perdida sozinha vagueia
Pelas areias
Guardando o ouro
De seu pai, seu senhor
Aquele fidalgo
Que o tempo levou
Pras bandas do mar de pó
E hoje que tudo passou
A linda sinhazinha
Encantada ficou”.
Era esse encantamento de juventude que levava naquele trem baiano.
Em Brumado o trem parou por quase duas horas e aquele mormaço leve que entrava pela janela se alojou no estômago do vagão criando uma estufa. O fiscal avisou que um carro de carga ia ser engatado ao trem e que isso ia demorar um tempo. Uns passageiros reclamaram, outros gostaram. Se tinha todo o tempo do mundo o meu tempo era aquele. Era o momento de pisar na terra baiana. O nome Brumado deva ter nascido do vapor que o sol criava no horizonte do lugar. As casinhas sem reboco, ao longe, ficavam esgarçadas, tremiam como se evaporassem. Três gatos pingados que esperavam o trem se misturaram a vendedores de tudo o que era troço.
Oia o Mioooo….oia o miooooooooo… oia o miooooooooooooooooo…..
Esse grito, ou canto, ou mantra não sei, saltava na fresta do silêncio na estação que nem plataforma de desembarque tinha. Um comércio de tudo o que se arrancava da terra era oferecido aos passageiros. Havia um certo desespero em se vender carne de sol frita em banha de porco, galinhas vivas amarradas nas canelas, legumes em fardos, laranja e banana da terra, e uma penca de frutos do agreste que eu não sabia o nome. Essas vinham dentro de bacias de alumínio que brilhavam com o sol.
Desci do trem. Um menino vendedor de milho de no máximo 10 anos se aproximou acompanhado de um mais velho que se arrastava em uma espécie de prancha de madeira com rodas. Ele não tinha as duas pernas e se movia meio no sacrifício acompanhando o mais novo. Ele que gritava:
Oia o Mioooo….oia o miooooooooo… oia o miooooooooooooooooo…..
Quanto é o milho?, Um Real!, Me dá dois!. Esse foi o negócio.
Começo a roer o milho cozido como um porco come a ração – muito salgado, mas bem cozido devoro os dois enquanto reparo a dupla de vendedores.
O menor vendia, o mais velho gritava anunciando o produto. Entre aquela bagunça organizada de trem parado em estação observo a semelhança dos dois moleques. Seriam irmãos? O pequeno, um frangote, com a bacia mal sustentada pelos palitos de braços e o outro comprimido por sua deformidade se arrastando em sua tábua com rodas.
“Ele é seu irmão? Pergunto ao menino mais novo que cobria com um guardanapo de pano a bacia brilhante.
“O alejado?” – respondeu. “É sim senhor!” – Me assustei com a franqueza do menino e devolvi:
“Mas… ele não é seu irmão? Porque chama ele de aleijado?”
O pequenino me olhou pela primeira vez de verdade, jogou a bacia na cabeça e respondeu:
– “Ele é alejado memo”
Não havia rancor, não havia ódio ou maldade nas palavras do menino de 10 anos, vendedor de milho, que seguiu com o irmão, margeando as janelas do trem no labor da venda…
Oia o Mioooo….oia o miooooooooo… oia o miooooooooooooooooo…..
Essa foi a segunda lição do trem: em Brumado não havia figuras de linguagem, apelidos ou metáforas. A vida ali era aquele sertão, aquele agreste ora seco e duro, ora espantoso, ora encantado.