O vento, o cheiro do atrito das rodas do trem com os trilhos, as montanhas de Minas que ficavam para trás me enxertavam mais uma vez aquela alegria incontida

Para os amigos baianos Dilson Jatahy, Gorgônio Loureiro e Nelson Rocha

Quando o fiscal do trem me disse que já estávamos na Bahia tive uma alegria momentânea daquelas sem nenhum sentido prático. O que eu iria fazer com aquilo? Não era baiano, não estava voltando pra casa, apenas tinha a Bahia como um estado interno de felicidade, uma bem aventurança encravada em algum canto da mente ou do espirito de forma nenhuma explicável. Viajar sozinho tem esses problemas de não ter com quem dividir uma alegria, mesmo que ela não tenha nexo. Finalmente alcançara o Nordeste que até aquele dia só conhecia nos livros de geografia e nas revistas de técnicas agrícolas.

Tinha saído à pouco de Monte Azul, uma cidadezinha mineira na crista de Minas Gerais e agora entrava na famigerada região dos coronéis. Deixava para trás as pedras preciosas de uma Minas Gerais adolescente com suas cidadezinhas que lembravam turmalinas, diamantinas e esmeraldas e entrava no agreste brasileiro. Em breve veria o sertão nordestino com seus cactos – que lá chamam de mandacarus e seus vaqueiros encardidos com o pó de ouro das estradas.

Sim, estava na Bahia e quanto mais ao norte eu estivesse, mais claridade eu teria. É lá onde o sol brilha com mais força. Sim, vivia o período em que a vaidade andava colada e a pele bronzeada me deixava com a falsa ilusão de que eu ficava mais bonito. Sentei na janela do trem e ia curtindo a paisagem recebendo aqueles raios baianos nos braços e no rosto.

Ao meu lado, um senhorzinho com roupa de vaqueiro picava um fumo de corda e o embrulhava em uma palha de milho produzindo ali o seu cigarro caboclo. Pensei na hora: “será que esse velho vai acender esse porronca dentro do vagão? Foi pensar e o velho se levantou e saiu para a plataforma do trem, onde os vagões se engatam.

Não conseguia ficar parado. O apito do trem, o movimento dos vagões e o sertão da Bahia correndo lá fora pelas janelas me emprestavam algo muito grande para um peito de apenas 18 anos. O vento, o cheiro do atrito das rodas do trem com os trilhos, as montanhas de Minas que ficavam para trás me enxertavam mais uma vez aquela alegria incontida, aquela experiência jamais vivida mas sempre aguardada: liberdade, paz, espaço dentro de um vaso chamado juventude.

Mas era uma juventude estranha a minha. Nos tempos dos dancing’s, em que todos os da minha idade adoravam as coisas da cidade, eu preferia as casas de adobe, os fogões a lenha e as águas arrancadas dos poços. Era tão estranho que ao som das rodas do trem tectectetec tectectetec tectectetec tectectetec tectectetec vinha um som da minha cabeça que acompanhava aquela batucada: não era uma banda metaleira de rock and roll, mas o trenzinho caipira de Heitor Villa-Lobos.

Fui atrás do velho do cigarro de palha na saída do vagão. Ele tragava o arrebenta peito naquele espaço apertado entre um carro e outro. Me encosto na janela oposta para fugir daquele cheiro de carniça que a fumaça trazia. Gosto não se discute e os incomodados que se mudem. Com essa tolerância mental puxei conversa com o senhorzinho:

“Viagem boa essa hein tio. É minha primeira vez na Bahia…”

O velhote me olhou primeiro com um certo desprezo, depois com uma cara de espantado me devolveu a apresentação com uma breve pergunta:

“O senhor tem cara e jeito de paulista. Tô certo?”

Ele estava certo e começamos uma conversa gritada que concorria com o tectetec tectetec tectetec das rodas do trem.

Hermes, o seu nome, era de Vitória da Conquista, mas plantara suas raízes em Contendas do Sincorá onde cultivava cacau e criava carneiros, cabras e bodes. Me perguntou:

“O senhor está indo para Salvador?”

Disse que sim, mas achei estranho, era a segunda vez que me tratava por “senhor”. Da primeira talvez fosse uma ironia, uma resposta à minha figura de jovem rebelde, cabelos compridos e roupa diferente. Na segunda vi que era um tratamento de respeito. Descobri que no sertão brasileiro, até que se provasse o contrário, com 16 anos e alguns pelos no rosto éramos tratados à altura da responsabilidade que a vida nos tinha por exigir.

Esta foi a primeira lição do trem e ainda não tínhamos chegado a Caculé.

(A SEGUNDA E A TERCEIRA PARTE DESTE ENSAIO SERÃO PUBLICADOS NAS EDIÇÕES AINDA DE JANEIRO 2021)

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