Alma furtada

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Sinto que não faço absolutamente nada
quando não quebro pedra,
ou lambreto minha máquina no asfalto.

Pensar, ler e escrever
são lapsos que meu corpo engendra,

me auto-sabotam e me tomam de assalto.

Cada marretada que dou na matéria,
no poema ou na construção de algo,
com sensibilidade ou ritmo,
cria rasgos, fissuras da força empregada,

sou peão de obra, do andaime alto
voo para o salto.

Pensar em tempos de algoritmo
é o mesmo que cair em emboscada.

Então vou quebrar pedra.

Cada verso ou reportagem que crio,
sinto o cadafalso sob meus pés,
uma guilhotina, um pelotão de fuzilamento

pronta a despencar, pronto a atirar,
mas por obra do acaso ou do destino
erram o alvo e me salvo
por um fio…

Quando penso, quando leio, quando escrevo,
não ouço, não dou a mão, nem salvo ninguém do inferno,
da tristeza ou da dor.
Muito menos aumento as chances de ser amigo de meu traidor.

Então vou quebrar pedra.

Quando a obra se der por acabada,
seja em estilo sóbrio ou elegante
inspirada na escola romântica ou realista
sei que dei ao mundo o impensado
arrancando lá do fundo o que mais amo.

Quando a obra se der por acabada
meus poemas serão tag-ados
e rastreados por sua palavra-chave
identificados por back-links relevantes
e interpretados por apressados, superficiais e ignorantes.

Minhas crônicas otimizadas para o Google analytics
trarão informações de logística

e veneno em spray
para minha alma de poeta
e meu sangue de artista.

Paulo Atzingen, 17/5/2025

Ana Maria Soares

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Ana Maria Soares
Ana Maria Soares (Facebook)
Busco o pirão de carne na casa de Ana Maria Soares. Faço minha caminhada receitada pelo cirurgião e entro no condomínio Balbo sem precisar dar meu nome. Sou de casa.

Passo pelos anõezinhos do jardim que estão aqui desde que o mundo é mundo. Penso em roubar uma rosa mas um morador me olha da janela.

Ana me aguarda na porta, como sempre, como uma guardiã leal, que viu os filhos seguirem seu caminho e que agora, no frijir dos seus 84 anos aguarda o genro, como uma extensão da família.

É óbvio que sou a caricatura de um filho legítimo, mas justamente por ser órfão de pai e mãe reconheço o amor em situações e lugares onde é preciso só olhar.

Olho o amor de Ana Maria Soares toda manhã quando forro a mesa do café com um pano de prato, que seria apenas um pano de prato se não tivesse em volta uma barra de croché feita por essas mesmas mãos que me abrem a porta. São flores, são corações, são peixes, são formatos em linhas brancas que me enlaçam ao seu encontro.

Quando vejo este croché toda manhã antes do café, me corre um filme pela cabeça, passa pelas veias e me chega ao coração. Potiguar de Brejinho, sertão do sertão do Rio Grande do Norte, Ana Maria chegou a São Paulo na década de 60 seguindo o fluxo de nordestinos em busca do futuro. Ana costurou pra fora. Fez uniformes de firma, de escolas, de times de futebol, riscou e desenhou figurinos que deram lucro a terceiros, remendou camisas, cerziu fundilhos. Como uma ave, Ana protegeu seus filhotes, vestindo-os no verão e no inverno com suas asas de linha de algodão.

Olho o amor de Ana Maria Soares nesse pirão de carne que levo para minha convalescença. O amor de Ana está no ralar os legumes, no cortar a carne, no preparar os temperos, no salgar, no cozinhar o alimento que será oferecido aos seus filhos e netos, não importa quais.

Volto para minha casa com um coração aquecido por um amor que só Ana Maria Soares pode me dar e só eu posso perceber agora. Um amor que ela mesma não sabe onde nasce ou para onde vai, porque lá atrás era mais importante e urgente amar, do que explicar ou entender.

Obrigado, Ana, por me abrigar sob suas asas de linha de algodão!

Paulo Atzingen, 10 de maio de 2025

Olho o amor de Ana Maria Soares toda manhã quando forro a mesa do café com um pano de prato

Uma constelação

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Para a amiga Rose Almeida*

Essa estrela cadente
que despenca no céu
é a inquieta alma do Cosmo
que expressa seu canto
refaz a trajetória
nesse pano de fundo do passado
e nos cobre com seu negro manto.

Esse mapa cósmico
que Rose Almeida me traz
busca meu endereço de criança

naquela rua de paralelepípedos
onde aprendi a andar
naquela calçada de pedrinhas
em que me fiz garoto.

Naquela casa pintada de amarelo
onde mamãe, papai e os irmãos
formavam comigo a família
aprendi o que era o amor
o bem, o mal, a dor e o belo.

Esses pequenos bonecos
que a Rose traz
simbolizam o que serei
e o que será
mas também o que ficou pra trás.

São bonequinhos brancos e negros
homens e mulheres, adultos e meninos
que se expressam a partir
da escolha que faço
e da posição que os coloco
na tábua redonda
estabelecendo ali um elo, um laço.

Pergunta-me Rose, o que o coração diz?…
Vejo papai de frente pra mamãe
naquela parte da história
quando se uniram em casamento.
Respondo-lhe sem dúvida: “foram felizes, sou feliz!”

Mesmo depois de tanto tempo. 

Na mesa multicolorida
da constelação familiar
saltam-me aos olhos enigmas:
uma ponte, um céu e um muro.
Vejo-me abraçado e amado
por irmãos, pais e ancestrais
mesmo tendo sido imperfeito
inconstante e impuro.

São Paulo, 27 de abril de 2025.

*Rose Consteladora

Messias Jesus cantou pra Deus

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Messias
O louvor de Messias, a afinação de Messias, a gratidão de Messias, estão em sintonia com o que há de mais belo e puro no Reino de Deus, aqui na Terra (Reproduçao de vídeo)

Messias Jesus cantou pra Deus, agradecido, na última sexta-feira (25/4) em nossa Missão de Rua. Primeiro, após o banho, quando me entregou a toalha usada, depois no Salão, quando seu louvor ecoou pelos cantos e no coração de todos.

“Posso retribuir com um presente pra vocês?”, perguntou. “Sim, claro”, respondi, imaginando o que um irmãozinho morador de rua poderia nos oferecer. Então ele cantou.

E cantou um louvor buscado no fundo de sua memória. E enquanto cantava nos oferecia toda sua alma, toda sua riqueza, toda sua história.

“Bendito é viver em Seu nome, Senhor, em Seu nome… Senhor “…

OUÇA:

O canto do Messias, o sorriso do Roberto, a força da Helen e de tantos outros irmãozinhos e irmãzinhas são respostas ao Projeto Missão de Rua, da nossa IPI, do Ipiranga.

O louvor de Messias Jesus, a afinação de Messias, a gratidão de Messias, estão em sintonia com o que há de mais belo e puro no Reino de Deus, aqui na Terra. Seu louvor mostra que ele tem um coração grato, seja pela retribuição de um gesto, uma palavra, uma mão estendida.

Seus dois cantos, o primeiro após o banho e o segundo antes da refeição, são expressões claras, concretas de que o projeto Missão de Rua é um grão de areia de esperança e amor nesse grande deserto de solidão e abandono que são as ruas de São Paulo.

Messias trouxe ao nosso projeto um alimento diferente em forma de canto. Trouxe-nos o pão espiritual, sovado, amassado, cortado, assado e tomado forma lá fora.

Obrigado, Messias Jesus, você cantou pra Deus.

(por Paulo Atzingen)


Participe do Projeto:

O Projeto Missão de Rua acontece na Igreja Presbiteriana Independente do Ipiranga (Rua Agostinho Gomes 2235, São Paulo, SP, 04206-001 ·
(11) 2273-0146), na segunda e última sexta-feira de cada mês.

Próximas Missões:

Maio – 16 e 30; Junho – 13 e 27; Julho – 11 e 25; Agosto – 15 e 29; Setembro – 12 e 26; Outubro – 10 e 24; Novembro – 07 e 28; Dezembro – 12

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Um pastorzinho da Terra do Sol

 

Eu só peço a Deus

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O artista começa seu show instantâneo tocando a flauta andina que preenche os espaços do vagão e desperta do sono urbano os que ainda não o haviam notado (Crédito: PAtzingen))

Aos artistas latinoamericanos que tocam nas ruas*

por Paulo Atzingen

No metrô de São Paulo os artistas sobrevivem  com a  misericórdia que resta das pessoas e do brasileiro médio.  Não sei quem mais precisa de ajuda, o artista ou o povo. Este anda em farrapos material (mas não espiritual) e têm recebido esmolas emergenciais que não comprometem os cofres públicos nem os altos salários do Brasil.  Vivem assim não porque querem, não porque gostam, mas porque foi imposto a eles o trabalho, a luta e a sobrevivência no lugar de luxos, prazeres ou ócio. Não podem ir ao teatro, ao cinema e í  alguma exposição de arte e o que lhe restam são apresentações assim, de improviso, com a força e a alma que só os artistas de rua possuem.

Nesses ambientes urbanos é que se percebe a sensibilidade das pessoas que mesmo tristes e preocupadas aplaudem e retribuem com sua última moeda os verdadeiros artistas de rua, que vão aonde o povo está.

Talvez não exista troca mais justa e perfeita do que esta: músicos, intérpretes, poetas, mí­micos, trovadores, mágicos – que buscam no trem do metrô o alimento para sua famí­lia – e oferecem em troca comida iluminada  para a alma, dando aos tristes e desesperados uma réstia de luz natural em um resto de dia.

O artista entra no vagão com seus instrumentos de trabalho, um charango boliviano, uma flauta zampoña e duas esperanças: a de conseguir tocar sem que um brutamontes de uniforme lhe prenda e a de tocar o coração do paulistano mergulhado em seu telefone celular, em seus problemas e indiferente ao mundo e ao caos da superfí­cie.

O artista é um jovem com seus 25 anos no máximo, traja roupas artesanais feitas em algum tear nas fabriquetas clandestinas da periferia. Essa mesma periferia que abraçou os irmãos latinoamericanos que vêm a São Paulo na busca de trabalho e uma vida mais plena. Infelizmente a grande maioria desses irmãozinhos de cabelos lisos, de olhos pretos e esticados encontram a semiescravidão tropical.

Com a gentileza dos que têm a alma leve, o artista do trem pede perdão pelo incômodo e garante que depende do que faz  para levar o sustento para casa.

Começa seu show instantâneo tocando a flauta andina que preenche os espaços do vagão e desperta do sono urbano os que ainda não o haviam notado.  É um som profundo e que me atira no rosto  – mesmo com o ruí­do das rodas do trem – um vento vindo dos Andes, saí­do do ninho dos condores que moram nas grandes altitudes. Empunha sua viola charanga e começa a cantar:

Solo le pido a Dios

Que el dolor no me sea indiferente

Que la reseca muerte no me encuentre

Vací­o y solo sin haber hecho lo suficiente

Solo le pido a Dios

Que lo injusto no me sea indiferente

Que no me abofeteen la otra mejilla

Después que una garra me arañe esta suerte

Solo le pido a Dios

Que la guerra no me sea indiferente

Es un monstruo grande y pisa fuerte

Toda la pobre inocencia de la gente

Es un monstruo grande y pisa fuerte

Toda la pobre inocencia de la gente”

O artista retoma a flauta e se insere – e me coloca – novamente nas alturas do condor. Ele acerta o seu alvo aqui embaixo. Recebe aplausos e moedas e iça do fundo do poço o paulistano quase derrotado. Arranca do ventre da cidade homens e mulheres quase sem sangue e devolvem-lhe a cor e um novo dia.

Com a certeza de que em 50 anos pouco ou nada mudou, volto para casa cantando Mercedes Sosa:

“Eu só peço a Deus

Que a dor não me seja indiferente

Que a seca morte não me encontre

Vazio e sozinho sem ter feito o suficiente”.


*São Paulo, dezembro de 2019 ““ (antes do iní­cio da pandemia)

https://youtu.be/SIrot1Flczg

Aniversário no solstí­cio

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Comemorar aniversário
no último mês do ano
seja qual for a maré
ou as fases da lua
é chegar a uma festa
muito maior que a sua.

Vejam essas coincidências
irrefutáveis:
no dia em que nasci
o sol fica mais tempo no céu
e olhando pro alto
incontáveis
nuvens e o ar
formam
em precipí­cio
a imensidão.
vejam bem
isso:
aniversario no
solstí­cio
de verão!

É uma matemática
celeste
de esferas
que refletem
simultaneamente
nos trópicos
de Capricórnio
e de Câncer
mas quem
nasce dia 21
seja em qualquer horário
é considerado do signo

de sagitário.

Nesse dia mais
longo
do ano
as sementes são plantadas
no hemisfério sul
com mais fé
existe uma esperança
no coração
do agricultor
que vê o céu azul
e espera sua colheita
pois as chuvas
maiores
molham a estação
como um gesto
de amor.

E para não passar em branco
essa data natalí­cia
sem que eu fosse notado
uma conspiração cósmica
com uma precisão
cirúrgica
acertou em cheio
antecipando meu parto
para quatro dias antes
í  chegada do Menino
que dividiu a História
ao meio.

Esse 21 de dezembro
vem montado em promessas
que tardam mas não falham
na minha prateleira de esperas:
que eu perca peso e
diminua o açúcar
da minha corrente sanguí­nia
essas coisas da vida
Sexagenária.

Por fim,

agora mais do que nunca

maduro

só o que eu peço,

– na solidão do poema –

é uma oração mais plena

e um coração mais puro.

Meu tio, o Padre Juca (1)

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Padre Juca
Padre Juca nasceu em 19 de agosto de 1895! Sim! Temos um tio que nasceu no Século XIX!

Escrever sobre o Padre Juca é atravessar um século e ir lá atrás, em 19 de agosto de 1885, data de seu nascimento em Pirassununga (SP).

Padre Juca foi o segundo filho da extensa descendência deixada na terra por Francisco von Atzingen e Sophia Levy, e sua história resiste mesmo diante da implacável poeira do tempo. Sim! Temos um tio que nasceu no século XIX!

Com o nome de batismo José von Atzingen, padre Juca foi assassinado com 15 facadas em seu quarto na Santa Casa de Misericórdia, em Cachoeira Paulista, em 20 de dezembro de 1957. Este fato bárbaro interrompeu um ciclo de bondade, renúncia e exemplos muito maiores e significativos que o próprio latrocí­nio. Sua obra foi maior e é isso o que importa. Neste espaço relatarei três episódios que mostram a natureza de bondade deste homem e a extirpe de cristal a que ele pertencia: a reza diante do edifí­cio Itália em São Paulo, durante sua construção em 1956; o trem que não partiu sem ele para Queluz (SP); e o circo pobre que foi abençoado por sua intercessão, em Piquete (SP).

Livro de Tia Margarida e docs do Tião 

A árvore genealógica da famí­lia semeada por Margarida von Atzingen em livro foi uma tentativa heróica de minha tiazinha da avenida 17, em Rio Claro, de congelar no tempo a passagem das nossas gerações. Admiro-a por isso pois conseguiu, antes da era digital, reunir dados dos nossos ancestrais. Nele encontro trechos da vida de meu tio José von Atzingen que após viuvar em 4 de setembro de 1927, tornou-se padre, o Padre Juca.

Os documentos guardados com zelo por meu tio Sebastião sobre o Padre Juca também me inspiraram. Esses documentos, se enviados ao Vaticano para análise, poderiam elevá-lo í  condição de santo, sem exageros.

Dentre a mirí­ade de atos não simbólicos, mas concretos de meu tio Padre Juca, que deve hoje estar organizando uma paróquia em alguma constelação do Universo e dando a si mesmo uma atividade prática para fazer, destaco relatos de sua misericórdia diária em favor dos pobres, miseráveis e desprovidos de compaixão. Padre Juca provia-os de tudo isso.

Embora tenha sido ordenado vigário por vários bispos no interior do Estado de São Paulo, o que salta para a história não são seus sermões em templos adornados por vitrais vindos da Itália, ou altares em ouro de alto quilate, o que salta para a história é seu trabalho no campo missionário, levando a palavra e o exemplo a quem dela precisasse. De posse sua, apenas a batina, dois sapatos e algumas peças de roupa.

Iní­cio da Ordenação

Após um perí­odo de 5 anos como seminarista (maio de 1928 a novembro de 1932) Padre Juca iniciou sua ordenação na Catedral de Taubaté como padre auxiliar, ali ficando por um ano. Em 1933 foi convidado e nomeado a vigário de Campos do Jordão, ficando ali de 1933 a 1938.

“Fiz nessa Paróquia o que pude, a bem das almas, e me esforcei para as obras da Matriz de Abernéssia, que foi mais tarde concluí­da”, escreve em sua autobiografia no livro de Margarida.

Ele mesmo descreve o enterro de sua mãe, nossa avó, Sophia:

“Era Vigário de Guará, quando em 1938, a 9 de agosto, faleceu a nossa querida mamãe, da qual eu mesmo, chorando, fiz o enterro e dei a absolvição solene até o túmulo “, relata.

Diante do futuro Edifí­cio Itália

Veio algumas vezes para São Paulo, capital, e o tio João, em uma dessas vezes, foi recebê-lo, na antiga rodoviária Júlio Prestes. Assim que desembarcou, conta tio João, ele disse da vontade em ir visitar um amigo vigário na avenida da Consolação.

“Eram 10 horas da manhã – conta João – e achei que o melhor era irmos a pé, conversando pela Duque de Caxias e Avenida Ipiranga. Paramos na esquina da Avenida São Luiz e Ipiranga, onde existia um grande tapume com a placa dos construtores indicando que ali seria erguido o gigantesco Edifí­cio Itália.

“Padre Juca perguntou-me que obra era aquela e eu informei que naquele local estavam erguendo o mais alto edifí­cio da América do Sul. Ele parou em frente a uma abertura do tapume e olhou lá para dentro. Seus olhos deram com uma imensa cratera de quase 20 metros de profundidade, onde, enterrados na lama até os joelhos, trabalhavam dezenas de operários, seminus, retirando barro”.

“É, disse-me Padre Juca, falando consigo mesmo, será um grande edifí­cio, mas sabe Deus í  custa de quanto sacrifí­cio, de quantos acidentes, de quanto esforço desses pobres coitados”.

E virando-se para o tio João, falou:

“Vamos pedir a Nosso Senhor que tudo termine bem, que ninguém se machuque e que esses operários possam ver com alegria esta obra terminada.

“Logo a seguir ajoelhou-se na calçada enlameada pedindo-me que fizesse o mesmo. Rezamos juntos uma Ave-Maria e um Padre Nosso e, de onde estava, Padre Juca lançou uma benção sobre os trabalhadores do outro lado do tapume.

“Até hoje, quando me lembro da espontaneidade e bondade daquele gesto, meus olhos enchem-se de lagrimas”, relata tio João. Este texto foi publicado por sua prima, Pérola von Atzingen, no jornal Diário de Rio Claro na edição de 17/5/1989.

Em breve “Meu tio, o Padre Juca (2)”

 

Silêncio

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Essas vozes que escuto ao longe
misturadas ao ladrar de cães
juntam-se ao meu lamentar criativo
montanhas de palavras sem sentido
pedras, paus, pombas, pães.

Com tudo isso penso o que faria
se não tivesse o verbo como sócio
Minha mansão não sei como construiria
tendo o sonho, o plano e o projeto
sem minha materia-prima essencial
para as paredes, o chão e o teto.

Ouço o caminhão acelerar na rua
uma bomba cair na Ucrânia e um grito
Neste aquário de dor e de ar
meus sentidos se enchem de um mar
longí­nquo, humano, infinito.

Dessa sintonia com as coisas do mundo
projeto para dentro meu contar mais profundo
Visito meus campos de trigo no Colorado
minhas estradas de ferro na China
meus arranha-céus em um paí­s europeu

E tudo o mais, o que o silêncio me deu.

Paulo Atzingen (Janeiro 2024)

Memórias dos Martí­rios / Andorinhas – Guerrilha do Araguaia

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Reprodução da wikipédia

Além de todo o acervo ambiental e cultural que a Serra das Andorinhas oferece, a região também foi palco da famosa Guerrilha do Araguaia, que começou em 1972 e terminou em 1975.

por Noé von Atzingen*


Em nossas primeiras excursões í  região em 1986/1987, encontramos os moradores com muito medo e desconfiança de qualquer estranho que por ali passava. Nos primeiros dias, alguns nem abriam suas portas para nós. Ouvimos deles que o exército ainda tinha informantes por ali e quem conversasse com estranhos era denunciado como suspeito.

Não era para menos esse medo todo! A grande maioria dos moradores sofreu muito com a repressão do exército: tiveram que ficar confinados í  Vila de Santa Cruz. Só podiam ir í s suas roças ou pescar se fossem acompanhados pelos soldados. Também não podiam sair a noite para caçar.

Transcrevo a seguir parte do depoimento que colhemos com a Madalena, uma moradora da vila de Santa Cruz:

Qualquer morador que desse um copo d’água ou um prato de comida a um guerrilheiro, era severamente punido e muitas vezes levado preso para Xambioá, onde era jogado no buracão e aí­ permanecia por dias ou meses”

Muitos tiveram suas roças queimadas e casas incendiadas, com todos os seus pertences, eu ( Madalena) , na época com 10 anos de idade, junto com seus pais e irmãos fomos arrancados de casa só com a roupa do corpo e presenciamos nosso barraco ser queimado pelo exército. Tivemos que se arranchar na casa de conhecidos na Vila de Santa Cruz até o fim da guerra”.

” Teve o Hermógenes da Cardinha que foi amarrado no helicóptero e levantaram voo com ele dependurado em uma corda. O Hermógenes entre outros ferimentos, teve sua bacia fraturada. Além desses, ainda me lembro do Picida que foi muito torturado eo Silvano, irmão do Picida, que morreu devido í s torturas. O Izidorão que você conheceu, foi amarrado sobre um formigueiro e foi obrigado a comer limão com casca e tudo. O germano foi obrigado a comer urubu e ainda teve seus dentes quebrados’, relata

Madalena, moradora de Santa Cruz (Arquivo Pessoal)

O exército sediado em Marabá, abriu as estradas OPI, Op2 e Op3 que deram acesso í  Serra das Andorinhas, onde os guerrilheiros, chamados também de terroristas pelo exército, lá viviam já há alguns anos. Havia um guerrilheiro por nome Amauri, que tinha uma pequena farmácia em Santa Cruz e era muito querido da população local.

O contingente de 69 guerrilheiros, a maioria estudantes do Sudeste do Brasil, mal alimentados e mal armados, deram muito trabalho ao exército nacional, que com mais de 10 mil soldados bem armados, bem alimentados, com helicópteros etc e mesmo assim levou 4 anos para por fim í  guerrilha!

Os guerrilheiros tinham uma base, na região da Serra, na margem do Ribeirão Gameleira. Essa base era comandada pelo famoso Oswaldão. Faziam parte dessa base, 23 guerrilheiros, entre eles o ex deputado José Genoí­no, João Amazonas (ex presidente do PCdoB) e a famosa Dina.

Até os í­ndios Surui, que vivem ali próximo, foram induzidos a servir de guia, para encontrar os guerrilheiros.

Alguns moradores da Serra como o Beca e o Pedro Galego, mesmo contra a vontade, também serviram de guias.

Para quem gosta da história viva, a Serra das Andorinhas é um prato cheio!

No livro do Gorayeb, no capí­tulo “Importância Histórica da Serra das Andorinhas” Maria Virgí­nia Bastos de Mattos e Antonio Carlos Bastos de Mattos afirmam que a Guerrilha do Araguaia provocou a maior movimentação de tropas brasileiras deste a Segunda Guerra Mundial, e sem dúvida a maior realizada no interior do Brasil, em todos os tempos. Avalia-se que foram mobilizados entre 10 e 20 mil soldados. Para quem gosta da história viva, a Serra das Andorinhas é um prato cheio! Pois, além das deliciosas histórias sobre a vida e cultura local, ainda está muito vivo na memória de muitos moradores esse interessante e mal conhecido capí­tulo da história brasileira.


BIBLIOGRAFIA

GORAYEB, P.S.de S. Parque Martirios/

Andorinhas : Conhecimento, História e Preservação. EDUFPA 2008

MATTOS, M.V.B de – História de Maraba.

Fundação Casa da Cultura de Maraba. 2013

Memórias dos Martí­rios / Andorinhas – Os épicos Rios Araguaia e Tocantins

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Memórias dos Martírios
Ilha dos Martí­rios - desenho de Castenau (1844)

Alguns viajantes escreveram verdadeiras odes aos rios Tocantins e Araguaia.
Como grande admirador destes gigantes da natureza não poderia deixar de mostrar um pouco das espetaculares descrições feitas sobre estes rios.

por Noé von Atzingen – Novembro de 2023


Comecemos pois com Leite Moraes descrevendo inicialmente sua passagem pela Cachoeira Grande no Rio Araguaia e mais adiante, pela Cachoeira de Itaboca no Rio Tocantins. Leite Moraes passou pela cachoeira de Santa Izabel no Rio Araguaia em dezembro de 1881.
É impressionante o seu relato! Mesmo para quem já participou desta aventura, como meus queridos amigos, Madalena e Getúlio. Mas vamos ao relato de Leite Moraes:

“Estamos ouvindo o marulho fremente e estrondoso da notável Cachoeira Grande, tão importante como a de Itaboca.

É meio-dia. Os remeiros preparam-se, e, a uma voz do piloto, descem os remos precipitadamente; agora os proeiros já gritam, animando os remeiros e estes respondem.
O piloto, de pé, com os braços apoiados no leme e com os olhos fitos ao longe, dirige o batel dos nossos destinos…

E o bote o compreende; não corta as águas; desliza-se; não caminha: voa!’ Eis-nos precipitando-nos no canal, despenhadeiro ou cascata…o que vemos? Milhares e milhares de pedras imensas, isoladas pelas águas revoltas…

O bote toma a velocidade vertiginosa das águas … Abriam-se diante do nosso bote novas gargantas que nos engoliam… o piloto ora em pé, ora deitado, e í s vezes dependurado no leme, joga o bote í  sua vontade! Os remeiros cobertos pelas ondas remam e gritam como uns heróis ou uns loucos!

E um espetáculo indescrití­vel! Os perigos assaltam o navegante de todos os lados, ou o rebojo, ou a pedra, e quantas vezes, para desviar o bote do rebojo, atira-se-o í  pedra, e para desvia-lo desta, se o atira no rebojo! Nessa corrida vertiginosa, o Rio Vermelho, escapa do canal e oscila nas águas mortas de um saranzal, em torno de um rochedo; nossa respiração ficou suspensa… e todos í  margem do precipí­cio, fazem um esforço supremo e desesperador; o bote volta ao canal e precipita-se resvalando uma pedra enorne…E assim, exaustos de forças, pelas sensações despertadas pela aproximação da vida ao seu último termo, cortamos aquele rio, misto horrendo de águas, pedras e árvores. Após 45 minutos, vencemos a notável cachoeira!”

Confira algumas imagens:

Transcrevo a seguir a parte em que nosso viajante chega í  confluência dos rios Araguaia e Tocantins:

A 4 de janeiro ( de 1882) encontrou-nos em marcha. Amanhecemos com o São João de vista; já estamos em frente da primeira boca do famoso Tocantins, que vem absorver o Araguaia.

Painel esplêndido! A natureza como que sorri ao encontro dos dois grandes rios; a vista estende -se e por toda a parte belezas e encantos a extasiam; o espaço como que se abre para dar-lhes passagem e os horizontes alargam-se prestando-lhes homenagem! As nove horas da manhã o nosso bote descansa no porto do secular Presidio de São João do Araguaia. Desembarcados e fomos visitar a velha povoação paraense.” Mais adiante, em seu livro ” Apontamentos de Viagem” descreve sua passagem pela famosa cachoeira de Itaboca ( atualmente submersa pela Hidrelétrica de Tucurui):

‘ E eis que a corredeira se transforma em uma horrorosa cachoeira, na qual nos precipitados… entramos pelo caminho do improviso, esbarrando face a face com a morte de todos os lados. Não há palavras que descrevam as proporções do perigo que estamos afrontando! Os rebojos, uns sobre os outros, cruzando os raios das respectivas circunferências, naquele tumultuar incessante, abrindo sucessivas concavidades, surgem em torno do ( barco) Rio Vermelho, que trás a reboque a nossa igarité…

Um monstruoso rebojo, faz o bote voltar pela mesma esteira. Ao mesmo tempo, outro rebojo envolve nossa igarité, traga-a, e, arrebentando a corrente de ferro, a leva consigo! Houve um grito de horror e pesar soltado pela tripulação…

As sete e meia da noite, bote e igarité, remeiros e tripulação, saos e salvos, chegam í  praia… resistimos í  vida! Foram três horas de lutas que valeram uma existência inteira… foram três horas em cujos instantes todos ouviram soar o momento extremo da vida! E eu, que agora tomo esses apontamentos, duvido da minha própria existência! Ah! Tocantins, sois um mistério tenebroso! Só Deus pode sulcar as tuas aguas… os homens que as sulcam são… uns LOUCOS! 


BIBLIOGRAFIA
J.A.LEITE MORAES, Apontamentos de
Viagem , Penguin & Cia das Letras, 201 1

 

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