Por Paulo Atzingen*

Um hábito que herdei da cultura ancestral do século passado foi escrever cartas utilizando papel e caneta. Esta atividade consistia em utilizar de uma folha em branco – extraída de um produto natural chamado madeira – geralmente eucalipto – e sobre essa folha seguindo linhas horizontais previamente impressas – aplicava-se um objeto com cerca de quinze centímetros de comprimento com um tubo interno do qual, pela força da gravidade, saia tinta de dentro. Com esses dois objetos, papel e caneta, escrevíamos cartas.

Depois levava-as ao correio, devidamente envelopadas e seladas. Envelope era uma espécie de embalagem utilizada para guardar papéis e selo era o comprovante que a correspondência tinha sido paga e devidamente autorizada a circular entre territórios nacionais ou internacionais.

Escrever cartas, para mim, era uma maneira de me comunicar com alguém que estava em outra cidade ou país. A maioria das minhas cartas de adolescente eram cartas audaciosas, geralmente para reivindicar ou pedir algo, mas nunca eram cartas de amor, pois já lera Álvaro de Campos e sabia que todas as cartas de amor eram ridiculamente ridículas. Para dizer “eu te.amo” preferia falar na cara. Para expressar o meu sentimento mais profundo expunha-me à galhofa no risco de levar um não ou ser rejeitado. Para pedir eu optava pelas cartas, que era uma forma de me defender. Minhas correspondências às vezes pareciam suicidas, tipo tudo ou nada, e retratava a percepção de um mundo vasto, rico e generoso pronto para me atender, se o pedido fosse feito, lógico, de forma bem feita. E eu caprichava nos floreios e rococós. E pedia. Mas para pedir eu usava as cartas. Pedi isenção de taxa de vestibular, e fui atendido. Pedi assinatura na faixa de curso esotérico, e fui atendido. Pedi gratuidade em taxa aduaneira de produto importado, e fui atendido. Pedi proteção divina em uma operação otorringolaringologista e fui atendido. E de tanto pedir, acostumei-me.

Um dia resolvi escrever uma carta para a minha rica tia Lica, que morava em Rio das Pedras, no interior de São Paulo.

“Querida Tia Lica.
Com a doença de papai e o falecimento de mamãe tenho que ir mais vezes à capital tratar de assuntos relacionados ao inventário. Tia, sei que fiz 18 anos agora mas preciso logo cedo ir assumindo minhas responsabilidades de homem. Como único filho ainda solteiro e vivendo com a mesada de meu pai não tenho condições financeiras de integrar a associação de amigos da HD de Santos, que recentemente reduziu a idade minima de novos integrantes de 21 para 18.
A associação, tia, tem grandes propósitos humanitários e percorre todo fim de semana o litoral norte em busca de novos frentes de atuação para a liberdade, novos ares, novos mundos… Ela, a partir desse mês, dispensou a taxa de matricula, bastando unicamente ter uma HD para ser aceito no grupo. Pode até ser semi-nova.

Sei, tia Lica, que a senhora é generosa e tem um coração do tamanho de uma Rio-Santos, por isso, tia, venho por meio desta humildemente pedir de presente uma Harley Davidson 99. Pode ser 98.

Seu sobrinho querido.

Minha tia foi fundamental a forjar minha personalidade socializante. Sua generosidade em retribuir ao sobrinho o que ganhara com a herança do meu tio membro do partido encarnado criou em mim esses ideais libertários e de liberdade.

Esse desapego aos bens materiais e sua distribuição aos que têm necessidades de um mundo mais livre herdei de minha tia Lica. Funcionária de carreira – embora não concursada – conseguiu por mérito de meu tio – que é quase a mesma coisa – seguir sua trajetória ascendente na vida pública. Foi ela também que me arrumou um cargo no gabinete do deputado do partido encarnado. Fiquei responsável pela correspondência e me especializei em escrever oficios aplicando de forma prática toda minha expertise de solicitante. Sempre requerendo algo ou alguma coisa para o partido encarnado, para seus filiados, agregados e correligionários.

(…)

Reconheço que hoje não consigo mais dizer eu te amo pessoalmente pois as minhas preocupações são mais amplas e por isso uso as redes sociais.

Pessoalmente, aprendi a pedir diretamente, sem papel e caneta. Diretamente, olho no olho. Com o apoio inicial e generoso de minha tia Lica entrei na associação HD e aos poucos me tornei conselheiro e finalmente presidente da Federação Nacional dos HD que, por sua importância social, conquistou uma cadeira no Conselho Federal dos HD.

Este mês começa a campanha para as próximas eleições com o partido HD fazendo aliança com a bancada da bala. Começo minha campanha pedindo votos para uma cadeira no parlamento. Meu slogan é:
“Vento no Rosto para os portadores de HD”

*Escrito no Hospital Sepaco, SP – 10 de abril.de 2019.

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