Se Bob Dylan, Stevie Wonder e Neil Young me levaram ao encontro da gaita, Charlie Edward Daniels me levou ao estridente e impetuoso mundo da Country Music.
Aproveitei a minha segunda viagem a trabalho aos Estados Unidos para dar uma estilingada de New Orleans a Austin, capital do Texas, onde Daniels e sua banda fariam um show da última turnê.
por Paulo Atzingen
Confesso que conhecer os caipiras do interior americano tinha muito mais a ver comigo – à época e ainda hoje – do que ir ver o Mickey, em Orlando. Quando viajei pra lá terminara meu terceiro ano do curso técnico agropecuário, mas estranhamente optara em trabalhar em uma revista e escrever sobre música. Esses paradoxos que não se entendem na vida.
Tinha feito uma penca de amigos em Mirassol, Jales, Matão, Tupandi e São José do Rio Preto mas não conseguia engolir o gosto musical dos sertanejos que em suas letras monotemáticas só falavam em chifres, traição e amor não correspondido. A country music tinha uma pegada de velho oeste ensolarado e aquela combinação de banjo, violino, ritmo e estrada me levavam muito mais próximo ao que minha imaginação de jovem almejava.
É claro que eu ainda não vivia a fase das paixões arrebatadoras e isso me mantinha em uma certa distância da emotividade barata e superficial. Não me privava de gostar de outros estilos musicais só porque era paulista do interior. Sabia já muito jovem que todo gênero musical tinha por traz uma história dura de superação e dor e que o country e o blues – plantas musicais daquela terra do sul e do sudeste americano – não haviam surgido em saraus dentro de palácios mas traziam o grito de justiça, dor e tristeza dos trabalhadores das plantações de algodão e tabaco do Mississipi ao Alabama.
O que me empurrou para essa esticada de 800 quilômetros até Austin era o puro deleite de juntar dever e prazer vendo uma banda country de verdade e ao vivo.
….
Cheguei à capital do Texas em pouco mais de oito horas de estrada. Fui direto para o Austin Convention Center e graças à credencial de repórter tive fácil acesso à área dos camarins.
Shows preliminares já rolavam e os integrantes da banda de Daniels já estavam reunidos dentro de uma espécie se container – e dava para ver as garrafas de whisky entrando como se fossem tubos de gasolina abastecendo um tanque de onde sairia a energia e a luz da mais genuína música rural americana. Lembro que quando avisaram que um jornalista do Brasil queria entrevistar Charlie Daniels ouvi um dos músicos dizer “ele está atrasado, talvez chegue com o show já começando”…
E foi justamente isso o que o assessor de imprensa Jony Walter me falou.
– Mr. Paul, Charlie is late. Interview him afther the show?
Respondi que sim, mas sabia que não teria tempo após o show, meu voo partiria às 6 horas de New Orleans para Miami. Teria que fazer a entrevista antes dele subir ao palco, assistir uma ou duas músicas e dar o fora dali – como dizem os rednecks de Carolina do Sul.
Enquanto isso fui comer um churrasco texano e tomar uma cerveja. O Austin Convention Center estava lotado de cowboys e gente que tinha vindo de Dallas especialmente para o show. Tinha, por baixo, umas 10 mil pessoas. A cultura americana mais próxima da original eu conhecia ali em meio à uma ansiedade em ver o cara que encabeçara as paradas de sucesso por longos anos, tanto no gênero country como no pop e que experimentava, aos 80 anos, os lucros de seu maior sucesso: The Devil Went Down To Georgia.
Charlie chegou acompanhado de dois seguranças e uma espécie de sugar baby carregava o estojo com o seu violino. Aquela figura bonachona e alegre manteve seu bom humor e, já informado de minha presença, ofereceu-me whisky enquanto sentava para o maquiador besuntá-lo com algum tipo de creme protetor. Disse-me, sem me encarar, olhando para o espelho do camarim: “pode fazer duas perguntas, tenho que fazer o show”:
Liguei o gravador e indaguei fingindo estar calmo.
“Onde, Charlie (tratei-o pelo primeiro nome para ganhar intimidade) você foi buscar inspiração para o seu maior sucesso Devil Went Down To Georgia ?”
Me olhou de lado, espantado, meio incrédulo com a pergunta e respondeu:
– “Na Geórgia” e riu aquele riso irônico por traz daquela barba espessa e branca..
Não era a resposta que eu esperava. Ele, já impaciente talvez com a minha tola pergunta, levantou e disse bye bye. Me fiz de surdo. A morena sugar baby enlaçou-o pelo pescoço e puxou-o para o lado dela, mas eu ainda tive coragem de perguntar:
– Por que o Diabo foi para a Geórgia?
Foi como se eu interrompera o roteiro de seu show. Ele se voltou, se esquivou da sugar baby, e agora me encarara. Parecia que a pergunta trazia embutida uma resposta que nunca foi dada, porque nunca provocada, uma dúvida jamais levantada por ninguém e que agora era finalmente colocada. É aquele momento de glória de todo repórter que faz a pergunta certa à beira de um penhasco e ao invés de cair é salvo por uma águia.
Aquelas bochechas vermelhas e aquela barba branca brilhavam com as luzes do camarim. Me respondeu:
“Porque lá nasceu Martin Luther King para matá-lo!” e saiu meio de costa, olhando para mim.
Essa meia dúzia de palavras jorraram de uma vez da boca do astro country. Desliguei o gravador e me misturei entre os cowboys de Dallas e Austin para assistir pelo menos as duas primeiras músicas do show.
Consegui chegar a tempo em New Orleans e embarcar para Miami e de lá, para o Brasil. Da janela do avião a manhã americana dava um tom dourado ao relevo da Flórida, e se espalhava sobre a Geórgia, o Alabama e o Mississipi.
The Devil Went Down to Georgia é uma canção escrita e interpretada por Charlie Daniels Band, lançada em seu álbum de 1979 Million Mile Reflections. A Música trata da aposta entre o violinista Johnny e o Diabo, onde a vitória de Johnny lhe garantiria um violino de ouro, no entanto caso ele perdesse o Diabo levaria sua alma, a música é caracterizada pelos solos de violino que representam a batalha onde o primeiro representa o solo do Diabo e o segundo o de Johnny.
Charlie Daniels ganhou o Grammy Award for Best Country Vocal Performance em 1979.
Martin Luther King Jr. (nascido Michael King Jr.; Atlanta, 15 de janeiro de 1929 — Memphis, 4 de abril de 1968) foi um pastor protestante batista e ativista político estadunidense que se tornou a figura mais proeminente e líder do movimento dos direitos civis nos Estados Unidos de 1955 até seu assassinato em 1968. King é amplamente conhecido pela luta dos direitos políticos através da não-violência e desobediência civil, inspirado por suas crenças cristãs e o ativismo não-violento de Mahatma Gandhi.
*Paulo Atzingen é jornalista