Tio Sebastião (ao centro), com os irmãos: Jacó (à esquerda), Noé e João (à direita)

por Paulo Atzingen

Tive que beber muita água, diluir todo o álcool da adolescência que ainda circulava nas veias para chegar a essa mistura fina de sentimentos originais, inspiração sintonizada com coisas do alto, e de cara limpa (caretão como eu dizia) confessar o inconfessável: fui cínico e irônico em momentos que não devia e cruel quase em todo o tempo. Havia em mim umas ideias subterrâneas que surgiam como um relâmpago e depois iam embora como água de chuva.

Nem os dois comas que tive, o primeiro por excesso de velocidade andando de bike e o segundo por excesso de esforço em uma prova de atletismo no colégio, nem essas lições foram suficientes para me enquadrar na categoria dos humildes e mansos de coração. Fui atrevido, irônico e respondão.

A qualidade de vida e a liberdade que tive na infância me preparariam para ser um médico ou um advogado bem-sucedido (seja lá o que isso significasse), mas os livros que li e as aulas que tive forjaram-me um crítico implacável. Gastei todo meu inconformismo e revolta com o mundo em meus primeiros 19 anos de vida, depois comecei ser amansado como um burro xucro que precisa ser castrado para se tornar mais dócil. Por sorte, não chegou a tanto.

Minha ida para o Norte e o contato imediato de terceiro grau com a miséria dos grotões, a força bruta dos xucros, a cultura dos bugres aloirados do Sul e o próprio desdém que me foi transferido por pessoas e parentes (que experimentaram da minha empáfia e me devolveram na mesma medida), mudaram-me da água pro vinho. Mas foi o tio Sebastião que começou toda essa alquimia.

Querido sobrinho

Morávamos perto do seminário Claret e nossas missas dominicais eram sempre lá, onde meu tio Sebastião era diácono. Todo domingo topava com ele levando flores para o altar da santa-ceia, mantimentos para os pobres necessitados e remédios para os doentes e desvalidos. E diariamente sabia que ele levava velas para a matriz, cuidava da limpeza da sacristia e abria a igreja para os fiéis. Tião ia quase todo dia em casa para dar um abraço em meu pai, e quando me via falava: “Querido sobrinho Deus te abençoe”. Essa devoção de Sebastião me irritava e eu, cínico, fingia que entendia e tolerava. Achava o cristianismo algo muito parecido a práticas e rituais do passado, crendices que ludibriavam os incautos e confundiam as cabeças fracas.

E alguma coisa me levava a atitudes inexplicáveis como a mentira, a preguiça e arte de criar encrencas.

No campinho de futebol de pelada perto de casa não tinha uma partida que não saia aos tapas com um moleque adversário, que tinha as pernas mais grossas que as minhas, corria mais rápido do que eu e jogava melhor. Mas eu não aceitava.

Na minha adolescência fugi de casa várias vezes e inexplicavelmente trocava o aconchego do quarto e a garantia do café da manhã, almoço e jantar pela sombra e a proteção das árvores, pela incógnita das estradas. O perfil da rebeldia indomada.

Sebastião vinha uma vez por semana em casa rezar. E sempre, mas sempre, trazia três coisas: uma bíblia enorme que mal cabia nas axilas, um terço em contas de sementes e um bolo de fubá para acompanhar o café.

Sebastião mancava de uma perna e tinha a mão esquerda atrofiada. Nunca havia parado ou me interessado para saber o motivo. Achava que era de nascença. Sentado na sala junto a meu pai rezavam o terço e eu; escondido atrás da porta admirava a fé do velho passando aquelas bolotas de sementes entre os dedinhos amassados, dois ou três sem unha e rosados como a cara desses descendentes germânicos que somos.

“Santa Maria, Mãe de Deus, rogai por nós pecadores agora e na hora de nossa morte amém”

Essas tardes que os dois ficavam na sala rezando e comendo bolo com café tornavam meu dia mais suportável. Papai esquecia de mim e era o momento que eu jogava o gato pela janela para confirmar a força da gravidade ou a presença de imã nas patas do bichano já que ele caia sempre em pé. Era nessas tardes que me trancava no quarto e folheada as revistas das mulheres peladas. Ou ia para o jardim matar as saúvas arrancando suas cabeças…

Quando damos adeus à infância impregnada de ilusões maternais e amorosas nos distanciamos de um estágio de bondade original – quase insana – para mergulharmos naquela fase de puberdade em que a mente e o coração ainda se formam. Nessa fase, tudo aparentemente é muito certo e claro e evidente, mas na verdade tudo é impenetrável, misterioso, indecifrável e, em uma palavra: confuso. E acrescente a essa confusão uma rodada de cerveja, duas garrafas de vinho e uma garrafa de aguardente.

Várias foram as vezes que ao chegar em casa alterado encontrei Sebastião e ao olhar para ele – o mais amoroso e (contavam) também o mais rigoroso dos tios – tinha medo que me repreendesse.  Mas não. O velho me olhava com aquela cara rosada de alemão e dizia: “boa tarde querido sobrinho. “Como vai querido sobrinho?”

Era de uma amorosidade sem tamanho neste mundo.

Até que um dia descobri de onde vinha esta amorosidade desconcertante.

Perna decepada

Cheguei do campo de batalha do futebol onde como sempre tinha saído aos tapas com o adversário e o encontrei sentado na sala esperando por meu pai, que saíra. Iam rezar o terço. Curiosamente, pela primeira vez, me detive na perna decepada de Sebastião. Tive coragem e perguntei:

– Tio, como foi isso? É de nascença?

Ele me olhou com aquele olhar azulado formatado na mesma linha de montagem dos von Atzingen, me chamou para mais perto e respondeu:

– “Foi a roda do trem…” Falou isto mas parecia que eu tinha ouvido isso: “Foi uma oportunidade incrível que aconteceu comigo”. Sentei ao seu lado, zonzo, e ele contou-me de forma pausada, baixinho, como uma reza: “Eu trabalhava na Estrada de Ferro como ajudante de trem. Tropecei na linha e uma roda do vagão decepou esta minha perna esquerda e- na ânsia de querer salvá-la – tive minha mão esquerda praticamente toda estraçalhada, você tá vendo Paulinho?”. A calma e o tom que esse homem narrou sua tragédia me arrepiou a medula. Ele me contava uma fatalidade de tão alto grau que para suportá-la era necessário ser um super-homem. Suportar aqueles ferros sobre o corpo era preciso ter a força física e psicológica de um mártir. E sobrevivente, ter a humildade e a força de um santo eleito a um destino brutal…

“Sim, vejo, tio”, murmurei.

E me mostrou, de forma nítida e detalhada, sua perna esquerda com os pontos, feitos à época, já desaparecidos sobre a pele, entre cicatrizes e enxertos, uma ponta atrevida do fêmur se insinuava perto da rótula do joelho franzino e sua mão esquerda fragmentada, com dedinhos atrofiados sem unha e com apenas o polegar intacto.

Sobrou-me uma réstia de palavra, e perguntei:

“- Quantos anos o senhor tinha, tio?”

“19, querido sobrinho”…

Era a idade que eu tinha naquela hora, naquela sala. Era minha idade de ouro. E eu, que até naquele dia, resolvia tudo de forma abrupta e duelava com as pessoas em tons altos nas falas, comecei a falar mais baixo. E a brigar menos. E entender porque uns tinham mais fé que outros. Aquele tiozinho de boina na casa dos seus 70 anos à época, com sua perna manca e sua mão atrofiada me mostrava o que era vencer.

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p.s. Tio Sebastião von Atzingen, foi o décimo sexto filho de Francisco von Atzingen e Sophia Levy von Atzingen. Nasceu em Pirassununga em 23 de fevereiro de 1917 e faleceu em Rio Claro, em 18 de março de 2012, aos 95 anos. Foi o que teve vida mais longa dentre os 19 irmãos.

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4 COMENTÁRIOS

  1. Oi primo! Sou a Cynthia, neta da tia Margarida. A prima Zezé me enviou seu texto! Emocionante! Saudades do tio Sebastião! Já havia lido A mala do meu pai! Maravilhoso! Um grande abraço!

  2. Oi primo, adorei seu artigo sobre o nosso querido tio Sebastião.
    Quando nos encontrarmos, vou contar a história do “tio cocada” que me visitava religiosamente toda quinta-feira no seminário.
    Quando vi sua foto no começo do artigo é que me lembrei bem de você, um abração!

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