A miséria rural é mais leve que a miséria urbana, constata Sarges em suas andanças. Se nos confins de meu Deus, onde o canto do nambu e a dança dos babaçus isolados na capoeira comprovam a solidão do homem do sertão, na urbe o turista encarnado tem certeza de que a cuia com água limpa, a lata de farinha e o pedaço de carne de sol são provas irrefutáveis de que a barriga nunca estará vazia por lá, apesar da solidão. Nas costas disso, ele vê a miséria e a solidão urbana trazerem consigo a vontade em se fartar, criar placas de gordura nas artérias, para as UTIs sofisticadas fazerem jus aos avanços tecnológicos. É na cidade em que ele se aproxima dos encantos das luzes, mas também la´deixa de ver o risco do pássaro que corta o azul em dois horizontes impossíveis aos olhos de carbono.
Na roça, Sarges pergunta para o homem, na beira da estrada qual o nome da planta que dá a cor amarela, ele diz que não sabe, pois sua especialidade é capim.
No Grotão dos Caboclos, as castanheiras formam um cemitério e os galhos no alto, em agonia, parecem que arranham o céu, buscam, como as pontiagudas torres das catedrais, a clemência, a misericórdia, já que as pessoas aqui embaixo não foram merecedoras do perdão. A natureza paga o preço da ignorância humana e as castanheiras mortas fazem seu próprio réquiem; poderiam alimentar os filhos, dos filhos, dos filhos por mais cem anos, mas foram conduzidas à serra elétrica para o lucro imediato.
O turista encarnado vê na propriedade uma benção ao contrário, que é garantida a ferro e fogo. Ela, por algum momento faz acreditar ser a solução dos problemas imediatos, pois lhe empresta a hermética posse da independência, serve para manter uma aparente distância dos inimigos, que foram criados no exato instante em que ele descobriu sua liberdade em ter a terra. O arame farpado fala alto e seu zinco canto ao vento da tarde.
(…)
O processo de amansar a mata, nestes últimos 30 anos no Grotão dos Caboclos, transferiu aos homens a rudeza que ele permuta com os seus semelhantes sem perceber que é capaz de ter a mão mais leve. Ser forte, sem ser rude, ser austero sem ser estúpido, ser homem sem ser animal.
A miséria rural é mais leve que a urbana. Aqui, no Grotão dos Caboclos, em meio aos castanhais, entre o fogo e a fumaça, o turista encarnado vê o homem que vendeu suas 19 vaquinhas das 20 que possuía e comprou uma camionete importada para levar o leite. Ele agora é fazendeiro e tem orgulho nos lábios quando vai à cidade.
Vê também a mão do lavrador que planta banana e espera um ciclo de cinco meses para ver o amarelo ouro brilhando, caindo em cachos de alimento doce. Os sulcos que se formaram em sua palma criaram crostas ásperas de força e resistência. Sua felicidade é poder ver transformado seu trabalho num campo fértil para bananas e frutas de toda espécie.
De volta à metrópole, o turista encarnado, travestido de homem civilizado, que mais pensa do que sente, vive tentando explicar o inexplicável, vê no trabalho da foice, do machado e da enxada, uma parte da verdade que a vida lhe legou e que, ao se aproximar tanto da urbe, perdeu a capacidade de olhar. O pássaro corta o azul em dois horizontes mas é impossível aos olhos de carbono.
(Conto integrante do livro “O Turista Encarnado” – Editora Meca, pgs 33-34 – São Paulo, 2007)