Casapueblo, fica em Punta del Este, na rua dos bobos, número zero. (Crédito: Paulo Atzingen)

É uma casa muito engraçada e fica na testa de um penhasco que olha para os glaciais no sul. Sarges chegou lá a pé desvencilhando-se do grupo de turistas que chegavam em blocos em vans, microônibus, entravem em blocos na casa, fotografavam em bloco e iam embora em bloco em seus automóveis. O local e a casa são únicos, por isso a necessidade de vê-los com calma, paciência e silêncio, como quando se aprecia uma grande obra de arte. A Casapueblo, para ser entendida é necessário o silêncio interior e um vazio no estômago, para no mínimo, gravitar em torno dessas coisas maiores que as cascas e as aparências não nos permitem perceber, porque estão associados ao consumir, ao mastigar, ao cuspir e ao excretar, sem cerimônia e sem pensamento, maquinalmente, como ordenam as embalagens. Aquela construção, às margens do Rio da Prata desvencilhou Sarges por algumas horas do que é lógico e do que é óbvio e o fez olhar pela fresta de uma luz que se chama… verdade…

A verdade do ilógico, do surreal de Gaudi, de Dalí, de Miró…que inocência a de Sarges em querer interpretar a arte de um gênio! Quanto já se escreveu sobre a Casapueblo depois da Segunda Guerra Mundial? Quanto já foi derramado de tinta sobre o papel analisando as peripécias estéticas do pós-moderno Carlos Paez Vilaró? Quanto de crítica e lisonja aquela construção e tudo o que tem dentro dela deve ter recebido ao longo das décadas, antes que Sarges chegasse ali, como um turista? E por que “Casapueblo”? E foi justamente com essa dúvida alimentada durante toda a adolescência, que ele entrou na Casapueblo de Vilaró, a “Casa Engraçada” de Vinícius de Moraes. A Casapueblo de Vilaró não é óbvia, é oblíqua, e por isso, como o poetinha afirmara, uma casa que não tinha nada. Nada além de quadros, esculturas, gravuras, tapeçarias, livros e poemas pelas paredes. Nada para esse besteirol superficial em que a vida foi transformada. “O nada está para o vazio como o tudo está para o infinito”, pensou Sarges, lembrando do verso do poetinha: “Ninguém podia entrar nela não, porque a casa não tinha chão”. Era um mergulho na impossibilidade das coisas, explicando às crianças com clareza fantástica que a casa não tinha chão e pronto. Mas confundia os adultos por muito tempo com sua lógica de menino de menino criativo. “Ninguém podia dormir na rede porque a casa não tinha parede. Sim, as paredes da Casapueblo são construídas de cristal, e tem como amálgama o cimento da transparência.

A casa é engraçada. Manifesto contra a indústria do cimento retilíneo e seu amianto intoxicador. Manifesto a favor do infinito circular, do tudo parabólico.

Feita com muito esmero, a Casapueblo fica no Uruguai, em Punta del Este, na rua dos bobos, número zero.

Conto originalmente publicado no Livro “O Turista Encarnado”, Editora MECA-SP – pg.76-78 (2007)

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