Com o andar do tempo em meu trabalho e com o correr das paisagens lá fora capto a passagem de duas correntes de vento: o poético e o sistêmico. Vejam a paisagem de Salta neste inverno aqui no norte da Argentina: o plantio de tabaco e a extração do cobre abraçam essas duas atividades produtivas que marcam e marcaram época. Uma para o prazer e o deleite, outra para a fabricação de grana.
por Paulo Atzingen – de Molinos, Salta, Argentina*
O poético funciona em lugares abertos, diante de paisagens e nasceres de sol, e é livre. O sistêmico trabalha com processos, blocos de ideias e frases editadas ou prontas.
Saí da cidade de Salta e percorri o Valle de Lerma acompanhado por montanhas colossais, fui até o Parque Nacional las Cardones, chegando à noite em Molinos. O mal da montanha (soroche) para mim faz bem e a falta de oxigênio na cabeça é substituída por ideias e conexões em uma ponte de ar. veja:
Versos e parágrafos, poesia e jornalismo se esmurram e se amam, as vezes não sei onde começa uma e o outro termina. Minha hiperatividade mental é colocada em uma camisa de força quando essas duas energias se encontram, mas se liberta quando dão as costas uma para outra.
Passo pelo povoado Payogasta (aqui se chama pueblo) e somente casas de adobe demonstram a presença humana. O guia Eduardo Salas conta que o jaguar e as onças andinas não podem ser tratadas como amigas pois devoram os bezerros e até crianças. Em Cachi um jovem andino toca carnavalito em seu instrumento de argila e as notas musicais mergulham no Vale e voam para o infinito.
Fuga e Montanha
O texto poético é fuga, é um contato imediato com a incógnita, com o que poderia ser e não é, mas beija a esperança de que um dia seja, como o som que sai da flauta andina. O texto sistêmico é uma montanha com suas camadas superpostas de cobre e ferro, ônix e lítio, calcário e areia colocadas uma a uma, que explodem aqui fora em cores, economia e história.
Terra alta
O texto sistêmico se nutre de regras adquiridas, o texto poético se alimenta de inspirações herdadas. Ao unir esses dois planetas internos em um texto, este aqui, por exemplo, crio minha terra alta.
Aqui no Parque Nacional las Caordones há uma terra infértil para alguns tipos de alimento, mas as batatas, o milho e o feijão nutrem as comunidades. Entre esses povoados há um espaço vazio onde se erguem os Cardones, os conhecidos cactos, que ultrapassam as fronteiras do parque e se estendem até onde minha vista alcança.
São montanhas colossais, vales abertos e um outro tipo de relevo chamado “quebrada”, como falam aqui. Uma espécie de vale mais estreito onde geralmente corre um rio, pincelado por tons verdes: novamente, os cardones.
Intocados
Na reta tintim, a rodovia construída sobre a trilha andina que ligava o Sul da América ao Alto Peru, os cardones aparecem aos milhares e ali formam uma família por quase 12 quilômetros, embora a maioria que vejo na estrada esteja enfiado entre as pedras e crescem aos montes em sua solidão vegetal. São espécies protegidas pela lei saltenha e aparecem a partir dos 2 mil metros de altitude e desaparecem quando ultrapassamos os 3.5 mil metros. Eles talvez representem a síntese desta crônica de viagem. Intocados não geram grana, mas inspiram.
Esta falta de oxigênio em minha cabeça se compara à escassez de chuva neste inverno saltenho. A natureza, no entanto, tem seus truques mágicos e dá à terra o que ela é capaz de florir e à mente o que ela é capaz de pensar e criar.