Por Paulo Atzingen
O calor inclemente que faz no inverno do alto Tocantins altera as perspectivas de duas formas: a primeira porque o vapor faz as superfícies tremularem e não se define direito o que se avista a cerca de 200 metros adiante e, segundo porque as temperaturas escaldantes interferem na razão, no raciocínio lógico, tornam nossas palavras impróprias, erráticas e carregadas de imprecisão. Nas horas mais quentes do dia o vento vem encorpado de um vapor seco muito semelhante àquele ar que sai dos secadores de cabelos.
Mas foi embaixo dessa sufocante natureza que avistei na margem direita do igarapé de Urucum, o Hominídio do Planalto. O homem tinha um pouco mais de um metro de altura, encorpado com pelos (ou penas?) negras às costas e uma cabeleira crespa que contornava a cabeça redonda, desproporcional ao corpo, como uma grande cabaça. Caminhava com uma espécie de bornal na cintura e mancava de uma perna.
Não tinha a exata certeza que a descrição anterior era legítima e totalmente isenta de equívocos, o que sei é que ele também me viu e deu um sorriso, – um misto de terror e entusiasmo tomou-me por inteiro. Ao puxar a máquina fotográfica para registrar o achado, quando lancei os olhos para o outro lado do rio, o exemplar havia desaparecido. Agachei e em seguida subi em um pé de Murici para voltar a vê-lo e nada. Voltei às pressas ao acampamento do projeto de pesquisa.
Meu coração pulava de alegria e esforço. Finalmente avistara o último exemplar da espécie Hominídio do Planalto do gênero homo políticus. Não deixei escapar mais nenhum minuto. Anotei as coordenadas geográficas e a direção que o primata tinha tomado. Suas dimensões, tamanho dos membros, formação craniana, plumagem e até alguns aspectos que colaboram à descrição científica como o seu cheiro de fundo de jaula, o que não era o caso, mas era o odor. Do meu acampamento até o contato visual com o homem media-se exatos dois mil e setecentos metros. O horário do contato foi exatamente às 11h35, período do dia em que o sol termina nessa época sua circunferência no hemisfério sul.
Quando relatei aos diretores da expedição de estudo ao Alto Tocantins que avistara um dos últimos exemplares em extinção, recebi em poucos minutos uma mensagem direta do reitor que me congratulava pela perseverança e me exigia uma imagem do hominídio o mais breve possível. O reconhecimento do magnânimo reitor me envaidecia e me colocava em um estado de espírito ainda não experimentado na floresta. Viver enfurnado em biomas sub-tropicais à mercê das intempéries e sob a espreita de feras de todos os tipos é um exercício psicológico para poucos, mas era o que decidira em minha vida de cientista e pesquisador de nossa descendência. Despira-me de tudo e de todos, afastei-me dos grupos acadêmicos e eventos sociais para me dedicar à essa pesquisa. No entanto, a segunda parte da mensagem do reitor era quase que um veredicto. “Tire uma foto para comprovar seu achado. Caso contrário, dê sua missão por encerrada, já que não há mais verbas para pesquisas”. Dessa forma o magnânimo reitor terminava seu email.
Investira cinquenta e sete anos no estudo desse primata homo politicus. Acompanhara as pistas do seu deslocamento, que saíra do aquífero central Guarani em êxodo – cerca de 450 famílias – e percorrera o planalto contornando ora o rio Araguaia, ora o rio Tocantins em direção ao Jalapão. Sem criar descendência direta, aos poucos a espécie foi se extinguindo, ora por embates com outras etnias, ora por doenças sub-tropicais ora por causas inexplicáveis.
Nessas décadas de pesquisa adquirira três dengues, uma malária, várias infecções tropicais e inúmeras diarreias por viver entre os rios e igapós nas condições mais insalubres possíveis para um ser urbano. Por muitas vezes pensara em desistir nessa busca do que nos tornamos como espécie, felizmente não como indivíduos. Hoje tenho finalmente a comprovação da existência de um exemplar da nossa descendência e da nossa involução: o Hominídio do Planalto. Falta a foto.