Não tenho certeza se beijei o asfalto ou cabeceei a guia no meu último passeio de bicicleta, o que sei é que há vários anjos e arcanjos transitando pelas ruas e avenidas desta cidade. Vejam: estava estatelado na ciclovia e zonzo com a testa sangrando, o dedo aparentemente quebrado, o cotovelo esfolado e a bicicleta jogada na pista contrária. Do nada, me aparece uma moça que me ajuda a levantar, atravessar a avenida e ir respirar na calçada oposta. Perguntou meu nome, eu perguntei o dela e se era ela enfermeira. Era não. Pelo tamanho do galo que crescia em minha cabeça ela manteve-me calmo sequestrando prá ela meu pânico. Traumatismo craniano, acidente vascular induzido, perda da memória, paralisia facial, aposentadoria precoce, tudo isso passou por minha sangrada e irresponsável cabeça sem capacete. E sem miolo.

– Vou chamar um uber pra você… disse a moça-anjo, o Samu é demorado…

-Você fica com a bike? Consegui soletrar enquanto ela anotava seu número de telefone em meu celular. ‘Muito obrigado, moça…’, esbocei…

Não dava pra esperar uber, taxi. Dei com a mão pro primeiro carro que passou. Parou na hora.

– Meu irmão, eu caí da bike tem como me… Meu galo cantava alto e convencia pelo tom. O arcanjo motorizado chamava-se Marcos, tinha um bar e vinha da feira. Acelerou, ultrapassou perigosamente, furou farol vermelho e disse para que eu ficasse tranquilo que tudo ia dar certo. Me deixou à porta do PS.

A humildade fala alto quando estamos em uma maca olhando para o teto branco esperando o resultado da tomografia. Sequelas, paralisia, efeitos colaterais reduziram meus sentimentos a pó, mas um outro, inexplicável surfou sobre as ondas dessa mente confusa, desmiolada e sem capacete – e prevaleceu até a chegada do analgésico: gratidão profunda à moça-anjo e ao arcanjo motorizado. E nem era mais natal.

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