Em minha viagem para o Recife para conhecer o carnaval do frevo e do maracatu conheci dois caras no ônibus que viajava: João Carlos e José Rivelino, padrasto e enteado, respectivamente. Fatiando o Brasil de Norte a Nordeste, atravessei aqueles estados pobres e comandados por coronéis remanescentes ainda dos tempos do cangaço.

por Paulo Atzingen


Uma brutalidade climática em meio a poeira de juás e mandacarus imperava quando descemos em uma corruptela maranhense para almoçar. Era a emblemática Codó, cidade conhecida por sua tradição umbandista e grandes terreiros de macumba. O prato principal daquelas latitudes ensolaradas era a buchada de bode acompanhada de favas brancas, farinha de puba e muita pimenta. Meus dois companheiros de viagem me acompanharam na experiência gastronômica regada a algumas Cermas (cervejas do Maranhão) estupidamente geladas. Conversávamos, riamos, era uma viagem longa e o que nos restava era gastar o tempo e dar espaço para a amizade. Rivelino era um jovem de 17 anos e tinha esse nome para homenagear o camisa 11 da seleção canarinho. Jovem moderno com brinco na orelha e camisa estampada com os Beatles. João Carlos, o padrasto, era vendedor de filtros de ionização de água, uma revolução nos tempos de um Brasil sem água tratada, sem esgoto e recheado de coliformes fecais.

Na meia hora de parada naqueles quadrantes onde Judas perdera as botas a poeira misturava-se com a cevada e com o caldo da buchada, formando em minha cabeça de estudante uma imagem bem clara. O sertão saia de sua era medieval imposta pelo atraso e pela força dos senhorzinhos de engenho e plantadores de algodão e entrava numa era moderna de produção de cervejas. Puro delírio meu. Lá na costa maranhense o minério do Pará continuaria sendo escoado para os tigres asiáticos por mais 100 anos… Essas tiradas juvenis de uma era industrial e cheia de sonhos e justiça eram o tom das minhas conversas nos meus 20 anos de jovem. E a certeza de um sertão castigado com uma gente que ria quando devia chorar foi o assunto que rolou estrada adentro entre eu e João Carlos, o padrasto.

Mandacaru (crédito: Pixabay)

Das terras da Imperatriz, varamos o Piauí e o Ceará falando da cultura nordestina, da poesia de cordel, do encantado Reino de Ariano Suassuna, Ferreira Gullar e Manoel Bandeira, antes de atingirmos o Recife.

Pronto para seguir minha trilha carnavalesca individual, resolvemos tomar a saideira em uma organizada lanchonete do terminal rodoviário da grande capital pernambucana. A longa viagem valera a pena. Uma amizade bacana nascia com o vendedor de filtros. Entre uma cerveja e outra João me explicava que trazia o enteado para conhecer sua terra e que a esposa, enfermeira, ficara em Belém do Pará, trabalhando. João era o típico pernambucano de raiz, com valores claros sobre família, trabalho, compromisso e fidelidade. As conversas, as risadas, a afinidade nos assuntos naquelas 30 horas de estrada davam a certeza que manteriamos a amizade dali para a frente. José Rivelino, meio à parte das conversas, estava interessado em olhar o ambiente e as garotas da mesa ao lado. Saiu para ir ao banheiro ou flertar com alguma jovem que passara. O espírito do carnaval já pairava nos ares recifenses.

João balançou o queixo confirmando, meio envergonhado, meio sem jeito. Rivelino voltava pra mesa falando que as garotas de Recife eram lindas (Crédito: Pixabay)

Nesse momento João ajeita o óculos sobre o refinado nariz de mulato pernambucano e me diz, algo assim, meio no desabafo:

– Amigo, eu gostei muito das nossas conversas sobre cultura, poesia e arte, e tenho certeza que você vai entender o que eu sinto…

Epa. Várias pensamentos me ocorreram naquele segundo – a cerveja gravitava pelo semblante amanhecido de João e por estar de volta a sua terra pernambucana, claro, as emoções brotavam à flor da pele de meu novo amigo. Estaria com saudade da esposa enfermeira, que ficou trabalhando em Belém. Me preparei e respondi.

– Pode falar, João…

– Estou apaixonado…disse assim, num sussurro, meio apagado, quase inaudível embora o sistema de som da rodoviária, as conversas das pessoas tomavam o ar.

Tinha presentido. Era saudade da enfermeira que ficou na capital das mangueiras, de plantão. Fui confirmar:

– Pela mãe do José Rivelino?

– Não! pelo José Rivelino!…..

Um frevo cantado por Alceu Valença vinha de uma caixinha de som sobre minha cabeça e achei que não ouvira direito. Tirei a limpo:

Você, João, padrasto do Rivelino, está apaixonado pelo enteado?

João balançou o queixo confirmando, meio envergonhado, meio sem jeito. Rivelino voltava pra mesa falando que as garotas de Recife eram lindas.

O carnaval já começava em Recife (crédito: Pixabay)

O drama estava posto.

– Garçon! traz mais uma gelada, por favor! Pedi. O carnaval de Recife já havia começado e pela primeira vez veria o frevo e o maracatu com os próprios olhos. E também, pela primeira vez, o Complexo de Édipo invertido.

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