O Parque da Água Branca se preenche de lembranças nestes sábados de manhã. Os 30 anos que me separaram de seus detalhes e cores agora se abrem num espetáculo leve o que faz que suportemos o inexorável espaço entre os sóis. O cheiro dos cavalos no estábulo me tatuou a memória numa certa vez que papai me levou para ver os patos. Não queria ver patos, queria ver cavalos e touros em sua rusticidade e braveza. Havia saído da fase vila sézamo e já adentrava o período western com os tiroteios dos cara-pálidas sobre as aldeias dos pele-vermelhas e os escalpos destes aplicados naqueles. Já vira também uma porção de pessoas pular do edifício em  chamas e as enchentes do Tietê afogar uma família inteira. Lembro-me da carinhosidade que nossos pais nos dirigia sem saber que lá nas reentrâncias de nossa alma já estávamos sendo moldados pela espátula do ambiente carbônico da cidade com seus labirintos e espelhos. O Parque da Água Branca era uma simulação bem feita de uma terra escura que ficara pelos lados do Mato-Grosso, cortada por um rio sem nome cheio de troncos de árvores, barro e felicidade de menino que se encantava com o sino no pescoço dos bodes.

O cheiro do estábulo, dos cavalos e dos bois na Água Branca me fizeram perguntar ao pai com uma falsa inocência: pai… todos nós vamos virar estrume? Ele se assustava com minhas perguntas e desconversava com uma resposta que me colocava em meu devido lugar de criança… “Eu não sei o que você vai ser quando crescer, moleque”.  O velho pé de ipê-roxo está no mesmo lugar, mais alto, mais belo e mais vivo distribuindo cores para quem ainda pode vê-las. Aqueles jovens atletas hoje sentam-se no banco de mármore e lêem o jornal ou jogam dominó com seus colegas aposentados, e suas companheiras caminham lentamente entre as sombras das árvores postergando a lei que decreta sulcos no rosto. O menino clarinho cacimba dágua dá seus primeiros passos na picada de pedriscos, escoltado pela mãe protetora; a fotossíntese bolina os átomos das folhas, o cantar do sabiá embeleza o instante, um vento de quatro estações encaracola os cabelos e eu… a pensar no estrume das plantas.

São Paulo, 1º de agosto de 2004 (Conto publicado no Livro O Turista Encarnado, do autor – Editora Meca – SP 2007)

Compartilhe:

DEIXE UMA RESPOSTA