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por Paulo Atzingen – (Conto integrante do 3º livro do Autor, O Turista Encarnado – Editora Meca)

As doze mil pedaladas que Iolando dava para chegar ao Guaiúba, no Guarujá, traduziam sua liberdade de garoto e proprietário do nariz logo aos treze anos de idade. Atravessar as praias de Santos ora pela areia, ora pedalando entre os jardins, dar ‘oi’ ao Aquário e não pegar fila no ferry-boat tornavam Iolando o típico moleque que tem a bike, o sol e a praia como únicas razões na vida. E essas razões eram maiores porque pedalava para encontrar o mar para fazer o que também amava: pescar. Guaiúba era a praia discreta lançada ao mar e com vista para os transoceânicos estacionados esperando ordem para tocar o solo paulista. Guaiúba era a prainha amistosa com seus 500 metros de areia até aquele sábado fatídico. O dia era de mar revolto possuído pela fúria dos deuses azuis e verdes que conseguem manter esse colosso de água grudada à gravidade, mas não se responsabilizam pelos que andam pelas pedras próximos às mares nem pelos que pescam junto ao destino. Iolando lançava sua linha, anzol e isca ao mar numa embocadura formadora de um penhasco salpicado de pedras agressivas, ásperas, prontas para passar suas lâminas em qualquer substância que boiasse. Eram pedras que sofriam – aquele sofrimento de pedra – com o sol e a gravidade e o mar afiava suas milhões de pontas e quatro mil navalhas, numa constância infinita, entre explosões de ondas e marasmos de vagas, num balanço de idas e vindas diante da margem, intrincada, indefinível, ora visível e rasa com suas navalhas maciças, ora funda e obscura em seu precipício líquido. Iolando joga a linhada na esperança de fisgar seu primeiro peixe. No espaço de borbulhas entre uma explosão e outra de ondas vê o impossível, – aquelas coisas que se vê de vez em quando e nos fazem lutar contra a realidade e a imaginação. Iolando acha que vê um filhote de tubarão martelo, com a guelra exposta, se debatendo entre as pedras. Ou era um grande peixe ornamental com sua barbatana vermelha em seu balé submerso? Era um peixe enorme que mostrava parte de sua carne de forma entrecortada, reluzindo suas escamas entre as ondas e as marolas. O silêncio entre uma vaga e outra e o espaço de borbulhas e dúvidas era abissal. Iolando, pela primeira vez, pescara um peixe de quase 100 quilos, sentia o peso do peixe na ponta da linha! Sem muita técnica da arte da pescaria, dá um puxão para conferir se o seu peixe engolira a isca. A linha retesa-se, estica e um tranco puxa Iolando ao encontro do penhasco. Iolando enrola boa parte da linhada na mão esquerda e começa a puxar com a direita seu pescado. Seria um mero de 150 quilos, um cação de 200 quilos……? Sente o peixe se debater e dar trancos na linha como a querer se desvencilhar do anzol. Iolando agarra-se a uma pedra e como num cabo de guerra, aproveita o instante da vaga para puxar o pescado, que vai se aproximando da base do penhasco, mas, mais uma vez, obedece o repuxo da vaga na vazante que pulsa e volta para o centro do coração do oceano. Nesse instante Iolando pôde ver sua presa. Meu Deus! Não era um peixe, era um corpo! Não era uma guelra ou uma barbatana vermelha, mas uma camisa dilacerada que envolvia o dorso branco e fatiado pelas navalhas de pedra! Novas seqüências de ondas e explosões contra a pedra. Novo repuxo de volta ao mar. Rasgos nas costas e cortes nos braços pôde ver num instantâneo, mas também viu a leveza com que o corpo era dragado para dentro do mar obedecendo a respiração dos astros. O vento secou a garganta de Iolando na hora e o sal do ar entrou pelas narinas e, por pouco, não despencou lá do alto. Os joelhos fraquejaram diante do penhasco e Iolando, estava ali, diante do mar, puxando sua linha e seu anzol enroscados em alguma parte daquele ser ao sabor das marés. Iolando lutava contra a verdade. Não era um ser humano que fisgara, mas um peixe, um grande e belo peixe, e nessa tentativa de buscar a realidade puxou, pela última vez a linha, enrolando-a na mão ainda com mais força, sangrando-a. O fluxo do mar trouxe novamente à tona sua pesca submersa. Era mesmo uma pessoa! Talvez um homem; a água o levou de volta e o trouxe novamente: era um japonês – o cabelo negro escorrido não deixava dúvida e sua palidez se misturava à brancura das espumas – . Largou linha e anzol e saiu correndo para a praia, enquanto o mar, mais uma vez puxava, com sua língua salamandra o corpo do japonês para o estômago do penhasco.

 *

Uma família de nisseis se exasperava vendo a lancha salva-vidas trazendo o filho pescador, lívido e pálido de sal, envolto em sua mortalha vermelha. Estava com os pulmões cheios de água, cheio de cortes profundos na pele e um grande anzol enfiado entre o indicador e o polegar da mão direita.

Ao voltar de bike para Santos todo aquele universo de felicidade por encontrar o mar era um complexo fluir de incertezas. Pela primeira vez viu o Aquário com um misto de raiva e medo e a orla da praia com seus jardins e canteiros apenas como um entretenimento para a dor e o abismo.

São Paulo – março/abril 2006

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