Ela continua lá, estatelada, esparramada sobre uma grande planície de babaçus e é rendilhada por dois belos rios (Crédito: divulgação)

O Turista Encarnado voltou para aquela cidade que não via há alguns anos. Ela continua lá, estatelada, esparramada sobre uma grande planície de babaçus e é rendilhada por dois belos rios. Um é pouco largo e corre rápido para a confluência levando em seu caudal um barro vermelho arrancado das entranhas do vale das castanheiras; o outro é largo, preguiçoso e tem uma água ora diáfana, ora pardacenta que vem do planalto distante. Nesta cidade – por que passou como viajante – reviu alguns amigos que foram dignos par hoje serem chamados assim – outros não foi possível encontrar, escafederam-se, ultrapassaram o estado de solidão informal e devem estar em suas casas em alguma parte do Brasil com seus filhos e suas mulheres, uma para cada, fique claro.

Essa cidade é engraçada – e pôde ver isso agora – porque nela a vontade do progresso com suas agências de aluguel de carro, as construções de casas em lugares que antes eram florestas, misturam-se à sinceridade dos homens da roça que a ela se dirigem para vender mandioca, macaxeira como falam, ou as quatro galinhas e os dois porcos capiaus que engordaram no terreiro durante a invernada. Admira-se o encontro das pessoas com uma simplicidade essencial e aquelas apenas com o seu projeto circunstancial. Ela é engraçada com aquela poeira eterna, que, se alguns anos atrás, o incomodava, hoje serve como simbolo de resistência diante da sofisticação superficial de seres que se acreditam desenvolvidos. (…)

Caminho de quem vem, estrada de quem vai, morada de quem fica. Foi lá, sobre a areia da praia de julho que ele pôde ver aquela criatura. Uma ginasiana com seus trejeitos de adolescente refreados pela religião protestante. Ficaram amigos e reparou que seus lábios eram belos, sua voz música de ninar, seus olhos limpos e saudáveis e um corpo um pouco rechonchudo, mas uma rechonchudez jovem. A coisa foi rápida. Aperto de mão, beijo no rosto, inté mais ver. Lembra-se no entanto, de sua pele arrepiada pelo vento e os pelinhos da perna e da barriga se enrijecerem e captarem – como minúsculas antenas com cristais na ponta – os raios daquele sol da tardinha. Correram para pegar o barco e seus pés apressados fizeram a areia cantar. Pararam e ficaram brincando com a voz da areia.

-Não é com força, é com jeito! Lembra-se dela ensinando-o: Temos que pisar apenas de raspão, o som é mais belo; mais suave! Perderam o barco, mas ganharam-se. Ele, uma paixão platônica, ela uma amizade inesperada, talvez, não mais que isso. (…)

O sol lá ainda se põe com esplendor e os barcos, jet-skis e canoas de pescadores no caminho escarlate das águas reverenciam esse deus egípcio que se enterra nas nuvens da mata para voltar no dia seguinte com o mesmo furor do fogo. (…)

A ginasiana, paixão adolescente, teve filhos lindos, criou varizes e tristeza, engordou, mas algum dia o ensinou a pisar suavemente na areia para que o som saísse mais belo.

Aquela cidade, quase sertão, que certo dia o turista encarnado viu se perder na poeira dos caminhões predadores, hoje reaparece, não eterna como disse o seu mestre, mas floresce novamente como uma orquídea, infinita enquanto perdura, infinita enquanto o turista encarnado passar por ela.

  • Extrato do conto Orquídea – do Livro O Turista Encarnado – Editora MECA – SP 2007

Compartilhe:

DEIXE UMA RESPOSTA