Não conheço bem a matemática, a geometria, a física e a química, mas que existe um plano exato e bem calculado correndo por fora enquanto a gente vive e faz nossos projetos menores aaaah existe, aaaah isso existe. ..
São coincidências desconcertantes, acasos improváveis, acontecimentos sobrenaturais.
Minha perda auditiva já vinha me subtraindo o mundo, sugando-o como um funil engolidor de acordes, mastigador de ressonâncias, glutão de timbres, agudos e graves, quando este ano decido procurar o especialista e finalmente recapturar os sons, as músicas, as palavras, as emoções que estavam dentro de encontros, dos jantares, dos workshops, dos cafés da manhã que já me escapavam, fugiam para um buraco negro e eu, quase sempre, fingia que entendia tudo.
Quanta coisa boa, música, poemas, sons da natureza, me entraram por um ouvido e sairam pelo outro sem que me atingissem o cérebro, o miolo, para ser bem claro.
Fiz os exames, os testes, escolhi um modelo intermediário que não precisava me levar à extratosfera, nem ao escalpo financeiro, mas o suficiente para entender o que acontecia ao redor.
Sai da loja perto da Avenida Paulista e me espantei com os poderes adquiridos: ouvia o relinchar de cavalos nas ruas de terra de São José do Rio Preto, escutava o cacarejar de galinhas nas granjas de Jundiaí. Gente falando do outro lado da avenida. Carros, ônibus, buzinas me ofereciam um banquete de sons que não precisava. Era tecnologia demais para uma cabeça de menos…precisava calibrar o aparelho. E o fiz.
Os sons voltaram equalizados.
O espetáculo das vibrações sonoras para um ouvido direito atrofiado como o meu – por questões hereditárias e não por mal uso, deixo claro aqui – voltaram como uma nova temporada, carregada de novos espetáculos. Segundo o especialista, perdera de 30 a 40% da capacidade auditiva já era hora. Como em um anda-já, aos poucos fui dando meus passinhos retornando à estrada das vibrações: tons delicados para a sensibilidade maternal em meu hemisfério direito; tons graves de guitarras para o meu lado juvenil rockeiro, tons suaves de pianos para meu lado mais ou.menos sofisticado, ruídos estridentes de buzinas para o meu lado inquieto insocial e monocrático.
…
Vivia o êxtase de reencontro com os sons límpidos, longos e claros quando… PERCO O APARELHO da forma mais estúpida possível. Enfiado em um dos bolsos da bermuda domingueira e misturado a cédulas, moedas e chaves, o amplificafor sonoro foi puxado pra fora grudado ao celular, ou a chave ou ao dinheiro ou ao simples gesto de retirar a mão do bolso.
Sexo no lugar de nexo
Voltei àquelas situações de compreensão dissimulada, de necessária leitura de lábios para decifrar o enigma da esfinge ou para não entender sexo no lugar de nexo, flácido no lugar de elástico, egoísta ao invés de dentista e assim por diante…….
Mas vejam o que aconteceu
Na última reunião de presbiterianos independentes em uma típica cantina italiana em São Paulo relato a história acima (resumida em dois parágrafos) para dois ou três amigos próximos. E a Solange Mazzoni, sem pensar duas vezes, me diz.
– Minha mãe deixou muitas coisas. O aparelho dela eu dou pra você! Você quer?
Pensei que não escutara direito, mas fui ligando os pontos. A mãe de Solange, Maria Romero Mazzoni morrera no último dia 30 de abril e teve experiências próximas ao que relatei.
– Eu aceito! disse.
Estou aqui escrevendo esse texto e ouço nitidamente um pássaro na janela que canta um canto triste. Parece de propósito, algo meio arranjado, uma coincidência desconcertante, um acaso improvável. Algo sobrenatural.
A tristeza desse canto é limpo, lindo e claro. E me alegra.
São Paulo, 29 de maio de 2022.
Obrigado Solange, obrigado Maria Mazzoni, ouvirei por vocês!!!