Os jacarandás decoram as ruas de Buenos Aires neste meio de primavera e o turista encarnado, ao vê-los os percebe plenamente. Está voltando de ônibus da Bombonera onde assistira a seleção verde e amarela ser massacrada pelos argentinos: 0 a 3! Um jogo estúpido, carregado de covardia e violência. Sarges está entre a bola e o sentimento, sua pele de turista luta contra sua paixão pelo futebol; seu coração brasileiro digladia com sua condição de pai de um menino argentino, fruto de um amor adolescente pelo tango. As folhas da avenida Libertador não parecem ter fuligem, e as flores da rua Reconquista parecem ter pouco sol, a palidez solar do Prata.
O ônibus urbano avança pelas ruas, entra na avenida 9 de julho e os gritos ensandecidos da torcida portenha fazem Sarges revelar seu lado hostil de torcedor. Está disfarçado com uma camisa vermelha e um Guevara estampado no peito: “Argentina”! “Argentina”!. Só vontade. Ao olhar os jacarandás em seus meio-tons nas ruas portenhas lembra do provérbio antigo que diz: “É preciso conhecer para amar”, e recorda que o poetinha Vinícius andou naquela terra e que a amou também. Nesse devaneio, o torcedor portenho grita em seu ouvido: “Argentina! Argentina”! Sarges quer dar-lhe uma cotovelada na boca, mas lembra do grande Borges que descrevera as raízes profundas de seu povo e as fontes que nunca puderam saciar a sede de pátrias que lutam contra si mesmas. Lembra das Malvinas e adora os ingleses por um minuto. “Argentina! Argentina”!, grita um outro torcedor em seu ouvido para provocá-lo. Sua pele, seu cabelo, algo o denunciava. Pensa em cuspir, e arremessar seu catarro verde e amarelo na cara de um portenho, mas se contém. O ônibus pára no farol de uma travessa da 9 de julho. Cada rua por onde o ônibus passava arremessava Sarges a fases ainda não destintas na memória. Uma rua, com nome em guarani, o leva ao sertão brasileiro e lhe fala alto ao coração e uma outra, a Esmeralda, o encaminha para as planícies verdes da Amazônia com seus muiraquitãs. “Argentina! Argentina”! – berra o motorista antes de Sarges descer do ônibus. A selvageria que o futebol trouxe às duas pátrias de chuteira, essa sanha demente de sentir-se superior, pensava, era a contramão de um sonho de país e de cidadãos que amadurecem mas não se tornam estúpidos, que ficam grandes, mas que não se chutam, que viram homens mas não lutam boxe. “Argentina! Argentina!” gritavam os torcedores com as cabeças para fora das janelas do ônibus que parte. A camisa vermelha e o ‘Che’ no peito não disfarçavam seu DNA tropical. Leva uma cusparada de despedida e um xingamento: “Macaquito”!!!
Ao chegar ao portão de casa seu pequeno filho o aguardava com uma fita azul e branca amarrada à cabeça. No calor do abraço, o menino grita em seu ouvido: “Papi! Argentina! Papi! Argentina!”. É preciso conhecer para amar, recorda, enrolado nos braços do pequeno. Em seu peito ardia aquele sol amarelo, mas era engolido, diariamente, por uma planície verde de esmeraldas e muiraquitãs.
Conto integrante do livro “O Turista Encarnado” – Paulo von Atzingen – pgs. 89-90 – Editora Meca – SP 2007