por Paulo Atzingen

Quando peguei a estrada em direção a Mirassol – sim este era o nome da cidade do colégio agrícola que havia escolhido no mapa para terminar meu curso médio – levava duas peças de roupa na mochila, somadas à uma agenda que eu transformara em diário, e três ou quatro livros. Lembro do título de dois deles: o Evangelho segundo João e On the Road, de Jack Kerouac. Se o primeiro me remetia aos ensinamentos equilibrados e espirituais aprendidos em um catecismo mal feito e uma primeira comunhão postiça, o segundo me projetava para um materialismo escancarado, uma forma revolucionária de ver o mundo e as pessoas por meio de um modo de pensar e agir existencialista: tudo para o agora.

À beira da estrada pra pedir carona (como cantava Belchior) lia trechos dos dois livros enquanto aguardava por uma boa alma que quisesse dividir uma viagem e ter companhia.

O sol da tarde dos verões interioranos é por vezes violento e passa por cima do Trópico de Capricórnio sem cerimônia queimando minha pele branca de paulista fugitivo da metrópole.  Vivia a fase rebelde da vida sem rock and roll e sem drogas. No lugar, misticismo, viagens reais e natureza. Tudo o que não cheirasse a mato, chuva e manhã para mim era artificial e se tivesse a mão do homem não era mais puro. Vivia a época do sim e do não, sem relativismos. Via árvores à margem das rodovias e lamentava as suas condenações perenes. Brotariam, cresceriam, floririam e dariam frutos ali, em um mesmo lugar. E por estarem à beira da estrada seus frutos apodreceriam, ninguém os colheria. Pensava nas pessoas que eram assim também e passaram suas vidas plantadas em um casa, em um pensamento fixo e nunca viajaram, nem em palavras, nem em imaginação. Com o sol mais baixo olhava para as longas nuvens que o tapavam e, como um filtro, acompanhava os raios em grandes feixes que faziam brilhar os canaviais distantes, como holofotes. Era uma visão colossal em que se fundiam as planícies alaranjadas de canaviais já colhidos e um céu avermelhado pronto para receber o betume da noite.

À estrada, quase vazia, não me criava grande esperanças de sair dali daquele quilômetro. Caminhei rente à uma enorme propriedade rural produtora de etanol.

Cabritinhos da enorme fazenda que começava do outro lado da planície se aproximam da cerca de arame farpado. Eram dóceis e puros como a neve e me observavam espantados. Me veio a mente o que escreveu Batista em seu evangelho que levava na mochila: “Lá vem os cordeirinhos de Deus que retiram o pecado do mundo”. Eles vinham em minha direção e não tinham medo, olhavam-me curiosos entre berros e saltos sobre o capim verde. Esse versículo por mim adaptado e casado a um coração juvenil livre me trazia lágrimas nos olhos. Foi gravado em minha mente e coração de moleque durante anos naquele canto católico-medieval louvado na igreja de meus pais que dizia assim: “Cordeiro de Deus, retirai os pecados do mundo, tende piedade de nós “. À beira da estrada, lembrava das missas dominicais e do enigma mental que levava para casa: “Quem seria esse cordeiro que vai retirar o pecado do mundo?”.

Me aproximei da cerca e toquei na testa de um cabritinho e pedi: “cordeirinho de Deus, retira o pecado do mundo, tende piedade de mim, faz um carro, um caminhão, parar para eu prosseguir minha viagem…”

Não demorou muito, um caminhoneiro deu seta, diminuiu a velocidade, e parou no acostamento. Me levou até uma rotatória que dava pra uma rodovia que imbicava para o Oeste. Subi na carroceria do veiculo em meio a uma cana queimada, recém colhida. Acenei para os cabritinhos que se transformaram em pontinhos brancos, até sumirem. Agradeci. Nesse dia tinha aprendido a rezar de verdade.

Sentei sobre a cana e me protegi do vento. Abri o livro de Kerouac justamente nesse trecho: “Assim, na América, quando o sol se põe, eu me sento no velho e arruinado cais do rio olhando os longos, longos céus acima de Nova Jersey, e consigo sentir toda aquela terra crua e rude se derramando numa única, inacreditável e elevada vastidão, até a costa oeste, e a estrada seguindo em frente, todas as pessoas sonhando naquela imensidão, e em Iowa eu sei que agora as crianças devem estar chorando na terra onde deixam as crianças chorar, e você não sabe que Deus é a Ursa Maior?”


São Paulo (SP), outono de 2020

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