No baile da Corte

Foi o Conde d’Eu quem disse

Para dona Benvinda

Que farinha de Suruí

Pinga de Parati

Fumo de Baependi

É comê bebê pitá e caí”

(— Oswald de Andrade)

Caro professores:

Dest’ arte, nobres amigos, tenho me afastado com o raiar dos anos. O cansaço pela verso veio montado no cavalo do jornalismo com sua pressa efêmera de noticiar e denunciar, informar e transbordar o cérebro com parágrafos muitas vezes inúteis. Quando conheci Camões e seus brasões assinalados aprendi que meu arsenal de verbos poderia ser substituído por uma força dramática mais enxuta e mais direta. Havia entrado na senda dos haikai. Hoje ainda me vem à mente a oficina de poesia com meus alunos de 5ª série da escola pública no Grão-Pará. Professor imberbe, propus um desafio à classe. Eles criariam haikais a partir de elementos, simples, enxutos, concretos, fenômenos da natureza.

A deixa:

Joana, você não vai escrever sobre a estrela, você é a Estrela. Pedro, você não vai escrever sobre o rio, você é o Rio. Maria, não escreva sobre o relâmpago, você é o Relâmpago. Moisés, não escreva sobre o diamante que você encontrou, você é o próprio Diamante” E assim foi.

A poção mágica da poesia estava lançada naquela sala de aula e quase todos os alunos e alunas- filhos e filhas de operários, pescadores, feirantes do Ver-o-Peso – se compenetraram ao desafio.  Foram colocados em uma outra perspectiva, a da imaginação, da projeção, do sonho. Tinham sido resgatados do chão sujo das feiras, da argila movediça dos mangues e das palafitas e colocados em um altar de crianças imaginativas, jovens adolescentes que eram provocados pelo professor de português e redação em seu início de carreira.

Não consigo transcrever aqui todas as pepitas de ouro puro resgatadas daqueles corações jovens, ávidos pelo belo, sedentos pela doçura do prometido, mas nunca encontrado naquela periferia de metrópole amazônica com seu vento de rio e seu cheiro de folhas misturados a um odor de concreto de prédios do futuro e vidros de shopping para apenas buscar emprego.

Não consigo, professores, lembrar de todos os haikais produzidos naquela oficina da escola pública, mas tenho dois aqui escritos por – não me lembro o nome dela, ou dele – mas era assim:

Floresta

encanto o mundo

com minha cor universal

com minha dor vermelha em chamas

grito por desespero

arrancam meu seio

secam meu veio

pois não me amas

como sou

Floresta.

E esse outro, escrito por outro aluno. Este, seu nome nunca esqueci: Moisés, o menino negro (ou preto) filho da faxineira da escola:

Diamante

Sou negro e brilhante

no meio da serra enterrado

luto com a terra fujo pra luz

sou negro e brilhante

Diamante

A poção mágica incandescente da poesia pousou naquela sala de escola pública naquele longínquo ano do passado. Como um relâmpago iluminou tudo. Lembro que por algum tempo aqueles meninos e meninas começaram a se tratar assim. “O Diamante faltou hoje. A Floresta foi ao banheiro. O Arco-iris não estudou para a prova. A Estrela esqueceu o caderno”.

Foram meus melhores dias como professor, pois tinha descoberto uma nova forma de amar e ser amado. Até me apelidaram, carinhosamente, isso soube muito tempo depois, de professor cai-cai. Não, não porque eu caia, mas pela semelhança sonora com haikai. Obrigado alunos, obrigado escola, obrigado poesia.

Foram meus melhores dias como professor…

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