Texto: Paulo Atzingen – Foto: Daniel Lledó

O pouco do que meu pai deixou ao morrer foi esse obrigação de acordar cedo para comprar pão e leite. Somado a esse bem, que não precisei dividir com os irmãos mais velhos, ganhei essa mala alaranjada retrô que hoje voltou à moda e espero oportunidade para usá-la. Dentro dela alguns livros de viagem como Expedição aos Martírios, Segredos de Taquara Poca, Viagem a Ixtilan, uma palavra cruzada incompleta, um pijama azul marinho com cruzes azuis e um aparelho de barbear daquele dos tempos em que se usava Gillete.

Essa mala por sua ineficácia e demodismo foi esquecida em cima do guarda-roupa e cada vez que a vejo projeto-me a um passado meio longínquo, meio ali na esquina.

Embora o velho tenha partido já há quase uma década tenho sempre a impressão que todo dia ao levantar ele estará na sala para que eu o abrace, boceje alguma coisa em seu ouvido tipo ‘bom dia paizinho’ e, ainda sonolento, siga para o banheiro, lavar o rosto e mijar.

Esse abraço matinal era o nosso código de amor, sabe-se lá porque mas ele estabelecia um vínculo físico, não verbal, (já que as palavras são limitadoras e traiçoeiras) de que éramos pai e filho. Algo como a conexão de bondade e de proteção que deveria existir nessa relação conflituosa que segue pela vida entre criador e criatura. Mas, com o correr dos dias e dos anos bondade e proteção transformam-se apenas em belos termos de retórica.

Mas lá, no passado, eu via uma grande bondade em meu velho, talvez por ele ter sido o caçula de uma penca de 17 irmãos, talvez porque sempre foi mirrado e sua fragilidade lhe outorgara mais carinhos maternos, e por osmose me transfirira, afinal, era um pai bondoso, no máximo. O adjetivo protetor talvez não caiba já que ele se via mais às voltas com sua serraria para os lados do Mato Grosso do que com a família. Ou proteger para ele tinha outro significado que eu desconhecia e que nunca vim a conhecer.

Sua bondade era parecida a do Tio Sebastião, um dos irmãos da penca, mais velho que ele uns 10 anos. Tinham um negócio de serenidade, de pausa, incompreendido nesses nossos tempos de trem-bala. Talvez por terem, ambos, trabalhado na estrada de ferro. Ambos pareciam sempre ter aquele prazer indizível do momento seguinte de trem que partiu da estação, levando todas as malas, caixas, gentes e ansiedades próprios da espera. Tinham também, naquelas bolas azuis celestes dos olhos, uma pequena saudade de algo ou alguém que se foi.

Mas voltemos à mala.

Cada vez que abro essa mala me vem um cheiro de passado, um gosto de terra molhada e um sentimento de natureza onde aves, rios e estradas se encontravam.

Cada vez que abro essa mala vejo ele dirigindo seu jipe, apostando corrida com o trem com toda a família dentro. Era de uma alegria incontida todos os seis irmãos no chiqueirinho do carro agarrando-se uns aos outros e entre solavancos, baques e testas amassadas a descoberta de que não tínhamos medo de morrer e queríamos correr, correr, correr, ao lado do trem, correr, correr lado a lado com os vaqueiros de estrada, correr atrás de um lugar, de um estado de espírito chamado felicidade. Nesse ponto da vida, lá atrás dessas nuvens do tempo e quando ainda vivemos o êxtase das ilusões e esperanças e sonhos, naquela época em que começamos a acreditar em gnomos e super-heróis; surgiu em meu coração um sentido de família que jamais tive nos anos que se seguiram. Nós, todos juntos no jipe, apostando corrida com o trem.

Cada vez que abro essa mala me vem um cheiro de passado, um gosto de terra molhada e um sentimento de natureza onde aves, rios e estradas se encontravam

Cada vez que abro essa mala sinto o cheiro do pó de serra das árvores cortadas da serraria que meu pai comandava. Esse hálito de seiva nova me remete a um traço de minha história em que havia toras e pranchas, tábuas e caibros, vigas e ripas prontos para erguer um mundo todo em madeira, construir pontes para os que iam, cadeiras para os que ficavam, escadas para os que subiam e balanços para os que brincavam, que era o meu caso.

Cada vez que abro essa mala lembro de nós dois à beira de um riacho pescando e ele apontando para um ninho de pássaros na árvore:

“Olha, aquele ninho é de guacho”…

Foi umas das centenas de nós linguísticos que tive quando comecei a me apropriar da língua. À época, em minhas primeiras aulas de arte, a tia me ensinava a pintar as aquarelas com…guache.

Ficava imaginando, lá no rio, que era dali do alto da árvore e de dentro do ninho que sairia as tintas para minhas aquarelas de escola.

Cada vez que ele se despedia para suas viagens ao Mato Grosso – três coisas sempre saltavam em significado: a cor azul nos olhos do velho, as lágrimas nos olhos de mamãe e a mala amarela embaixo do braço.

Hoje ao remexer as caixas do passado sobre o guarda-roupa vi novamente a mala espremida contra a parede, empoeirada. Meio século de viagens e mais dez anos de confinamento em cima do guarda-roupa.

Essa mala herdei definitivamente após a divisão do espólio. Como irmão mais novo acabei ficando com as heranças enjeitadas. Existem coisas que são a nossa cara e meus irmãos tinham certeza que uma mala vintage era o meu retrato. Uma versão anterior ao meu passado mochileiro psicodélico.

Carrego essa mala desde então. Ela é o impermanente em mim; um rio que corre mas que não muda e que sempre à margem há árvores com ninhos de guacho ou de guache, não importa. Ela é uma estação de trem onde não há mais embarques, onde se ouve um apito e em seguida aquela tristeza de um trem que se foi.

o Paulo, outubro e novembro de 2018.

 

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