por Paulo Atzingen (textos e fotos)
Desço pela trilha uns duzentos metros e já consigo ouvi-la. Aquele estrondo das águas na pedra ecoa por aqui a milhões de anos e transporta-me pra fora desse tempo de negócios e contratos, faturas e boletos, recibos e promissórias do qual acabo de escapar. O cheiro combinado de madeira, plantas e terra é uma trindade que ganha um quarto elemento aqui: o vapor da cachoeira. Esses quatro elementos entram-me pelas narinas e pelos poros e são inegociáveis nos algorítimos de meu ser. Para continuar vivendo no lucro preciso desse quarteto fantástico.
Uma borboleta 88 aparece no caminho e me oferece a certeza: os números têm seu Império na natureza, mas ela não usa esses números e seu favor, mas a distribui fraternalmente. A fotografamos sem ela cobrar direitos de imagem… A natureza é dócil, surpreendente, enigmática, mas não compra nem vende, dá de graça. Mas é também violenta, cruel e pode tirar tudo. Desde isolar-me em uma rachadura de cordilheira a 100 metros da superfície, engolir minha casa para dentro do olho do furacão e tirar do mapa meus sonhos adolescentes ou meus projetos amadurecidos. Mãe amorosa e madrasta assassina, assim é a natureza, sem meio termo. Com ela não há negociação é ou não é.
Essas cataratas são assim: brutas e impassíveis de misericórdia, mas ao mesmo tempo incrivelmente lindas e hipnóticas: A água quando bate na rocha molda-a com a precisão de um cinzel, com a perfeição de um diamante que esculpe e esculpe-se por gravidade criando ali embaixo um vale de esculturas com ângulos lixados pelas eras e grandes pedras abauladas, lisas e úmidas como ovos que acabam de escapulir da cloaca de um pássaro do paleozoico.
Deparo-me com esta fábrica de água em franca produção e que em seu véu de seda encobre a nudez da muralha milenar. Atrás deste véu há uma bolsa de valores insondáveis.
Desço mais alguns metros pela úmida trilha e as paredes de rocha indicam o caminho para o centro do mundo. Fraturas expostas de basalto são esculturas de uma exposição artística do início dos tempos… o som das cataratas aumenta…
Nesse embate de água, rocha e margens com seus vegetais não há comércio, não há negociação. Apenas permutas minerais, trocas químicas, escambos orgânicos e entregas gratuitas, milhares de gotículas formam uma computação em nuvem natural sobre minha cabeça.
Veja a luz do sol: acaba de deixar seus raios bater gratuitamente na superfície da água, juntou-se ao vapor e ao movimento criado pelo impacto brutal da cachoeira dando-me de graça uma imagem impossível de descrever e comprar. Faço uma joint venture com essa claridade.
Permutas são feitas ali embaixo, nessa usina de decomposição de rochas, nessa tríplice fronteira que foi implantada ontem por nações que dividiram o homem classificando-os por língua, cor de pele e interesses econômicos.
O eco da cachoeira reverbera. É o mantra da terra gritando e esse som sai desta garganta de pedra. O networking se estabelece em todo o ambiente. Hectacombes de energia pura e gratuita acima de qualquer preço de mercado.
Me aproximo da queda maior. A água desprende-se de si mesma e forma uma colcha de ar e luz em um movimento brusco, ininterrupto e eterno, para baixo. Em 1 milionésimo de segundo esse milagre faz o câmbio entre sua camada superficial com o meu globo ocular. Essa imagem vai para o alto de meu cérebro e, obedecendo o ecossistema em que estou, despenca para dentro do meu coração.
Encharco-me de uma riqueza incompreensível e inexplicável.
Foz do Iguaçu e São Paulo, junho de 2019