borboletas amarelas
Aquela bola dourada parecia um carro alegórico flutuante; percorria a margem do igarapé e, sob algum comando inexplicável, as centenas de borboletas não se desgrudavam

Era uma terça-feira de cinzas sob o clima amazônico.  Sarges, o Turista Encarnado, ia como de costume, em feriados prolongados, à comunidade rural dos Hare-Krishnas, em Ananindeua. Era um misto de não gostar de carnaval, pouca grana e uma vontade de transcender, fazer algo diferente do que fazia a manada seguidora dos ‘treme-terras’ nas noites carnavalescas do Pará. Lá, ele e os devotos cantavam o mantra, liam o Bhagavad-Gita e dançavam – sim ! dançavam e cantavam louvando o psicodélico e a grande personalidade Krishna-Deus! Eram dias plenos de lucidez, equilíbrio e beleza acompanhados de banho frio e samosa, o pastelzinho indiano.

Na comunidade rural se levantava de madrugada para cuidar da horta, cantar o mantra e saborear o dia com a cara limpa. Sarges foi tomar banho de rio cedinho. A comunidade Nova Jarikanda era banhada por um igarapé que ficava próximo a um cotovelo da estrada. Uma ponta do caminho de chão batido levava ao sítio alternativo com sua comida vegetariana, seus temperos delicados, suas leituras e seus incensos. A outra ponta levava ao vilarejo urbano, início de civilização dita e considerada moderna e autônoma – com seus bares, suas cachaças e suas desavenças.

Era mais ou menos seis horas e Sarges chega ao riacho depois de uma boa pernada. A neblina sobre o leito do rio era fatiada por fiapos de sol matinais; o dia começava a sua usina de fatos e coisas.

Uma árvore caída servia de ponte para o outro lado e formava uma moldura para um quadro indescritível: uma nuvem de borboletas amarelas – talvez 100, 200 ou 500 – flutuava sobre a água e algumas – em seu balé matinal – executavam pequenos voos rasantes retornando ao grande corpo dourado que refletia na água estanque do riacho. Aquela bola dourada parecia um carro alegórico flutuante; percorria a margem do igarapé e sob algum comando inexplicável… as centenas de borboletas não se desgrudavam. O silêncio era tanto que Sarges ouvia os ‘estalidos’ das asas das borboletas em sua força total. O ‘todo atraente’ – descrito pelos livros de filosofia que lera – se apresentava. Um presente aos sentidos e – talvez – uma mostra da personalidade de Deus em seu estado pleno de pureza, calma e silêncio. Um início de dia radiante em que compreendia, ali, o amor em seu significado original, manifestado a ele na fonte, na natureza. Um presente para o seu carnaval filosófico? Uma amostra grátis de um carnaval particular para sua terça-feira de cinzas?

O aroma da manhã misturava-se ao calor do sol, ao amarelo das borboletas e seu corpo experimentava um supremo prazer descrito nos ainda incompreensíveis textos védicos, nas complicadas escrituras dos Upanishads. Não era mais preciso entender. Ele aprendera sentindo.

O ‘todo atraente’ – descrito pelos livros de filosofia que lera – se apresentava. talvez – uma mostra da personalidade de Deus em seu estado pleno de pureza, calma e silêncio

De repente, ruídos no ambiente natural; ouve vozes. Um casal de bêbados sai da folhagem e desce a ribanceira que leva ao rio cantando algo assim: ‘alalaôôô,ôôô, ôôô, allaôôô, ôôô, ôoô…..” O homem arranca os sapatos com os pés, fala dois palavrões e se aproxima ébrio da árvore que servia como ponte…”u bêbadu iquilibrista”, grita a mulher, também bêbada, sentada sobre um dos galhos da árvore instigando o amante a atravessar o rio. Ele – provocado – dá dois passos sobre o tronco, perde o equilíbrio e se espatifa sobre a água, até ali, intacta, límpida…

A neblina evapora, a água fica escura e as borboletas – (o carro alegórico com sua divina personalidade) – voam apavoradas, para o alto e para o mato, dissipando-se. A mulher adverte o amante, num misto de gargalhada, histeria e delírio ao ver aquela explosão de borboletas amarelas à sua frente:

“Tu és mais brabo que uma braboleta” e olha para Sarges na busca de uma aprovação ao que dissera.

“É sim…mais brabo que uma braboleta!”, concordou o turista acordado de seu sonho.

Como já era terça-feira de cinzas, Sarges não voltou para o retiro espiritual,  seguiu a estradinha em direção à civilização dita e considerada moderna e autônoma – com seus bares , suas cachaças, litígios e desavenças. Conforme ia caminhando rumo à civilização dita e considerada moderna e autônoma aumentava a certeza que se integraria ao bolo flutuante de braboletas brabas.

(Belém, fevereiro de 2001 – São Paulo, fevereiro de 2017)

(*Conto dedicado à amiga Lenir Silva, que conheceu a comunidade Nova Jarikanda)

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