Quatro cabeças pensantes, quatro corações amorosos, quatro pessoas distintas, sob a grande obra sinuosa de Niemeyer na aorta superior de São Paulo

Saíamos do happy hour de volta para nossas casas naquela noite de julho. Mary Aquino, a atriz; Zaqueu Fogaça, o jornalista e Raimundo Jesús, o cubano.

As conversas foram tão variadas como as cores de uma feira-livre, diálogos includentes, reformas dos sistemas, todos os sistemas, sejam eles quais forem, e a criação da sociedade dos poetas vivos com aquelas idéias que tocavam as nuvens e que ressuscitavam os artistas sonhadores, os revolucionários de balcão, os soldados da estética. Nós quatro tínhamos aquele perfil de inconformados, incomodados com o status quo, mas também ávidos por dias mais infinitos, mais transcendentes, mais fantásticos.

Quatro cabeças pensantes, quatro corações amorosos, quatro pessoas distintas, sob a grande obra sinuosa de Niemeyer na aorta superior de São Paulo.

Atravessamos a praça da Velha República e entramos na rua do Arouche. Zaqueu se despediu à porta do metrô e seguimos, eu, Mary e Jesús, desviando da flora e fauna noturna de uma São Paulo abandonada e cruel.

Acompanhávamos a dama do grupo, já que nessas noites frias paulistanas o cavalheirismo fica mais latente e brota qual uma flor no asfalto.

Um pouco depois da forquilha de ruas que dá acesso ao largo, já ao lado da estátua da Menina e o Bezerro, me vêm à mente a lembrança:

Meus equipamentos! Esqueci no bar!

Dei meia-volta, antes, pedi a Jesús que continuasse acompanhando Mary até sua casa. Ele ou não entendeu meu portunhol ou fez que não ouviu. Por reflexo, Jesús saiu em ritmo de corredor fundista de prova dos 100 metros rasos. De uma estinlingada só deixou pra traz a rua do Arouche, atravessou a Praça da República e chegou aos pés do edifício Itália, contornando-o em direção ao bar. Em seu encalço, eu gritava: Jesús! Jesús! Jesús! (queria que me aguardasse, mas o homem estava obstinado em ajudar-me, mais incomodado que eu mesmo pelo extravio – ele não sabia, mas em minha bolsa tinha uma máquina fotográfica e um drive externo com toda a história do jornal).

Jesús, espera-me! Um transeunte ainda me perguntou se o homem que corria à frente era ladrão e se eu precisava de ajuda; entre gritos e gestos expliquei que não, que era um colega de trabalho correndo para tentar evitar uma perda, um furto, um extravio…ó raios, não sei o que expliquei ao homem só sei que corria atrás de Jesús…

Quando cheguei ao bar o cubano já conversara com o gerente, com o garçom e com a atendente e minha mochila com o equipamento fotográfico aguardava-me salva e sã. Agradeci ao cubano e esbaforido fui embora pra casa.

Fiquei horas pensando sobre a disposição deste caribenho, já na casa dos seus 65 anos, com seu coração de moleque. Raimundo Jesús (este é seu nome), teria sido educado nas escolas públicas de Havana para competir em provas de atletismo representando seu país?

Raimundo Jesús, teria sido forjado sob o sol do caribe em meio ao trabalho duro dos canaviais e das plantações de tabaco e aprendido a cultura da solidariedade e da fraternidade para com seus irmãos?

Raimundo Jesús, onde teria obtido esse grau elevado de gentileza, essa distinção refinada em servir as pessoas? Com certeza não foi aqui no Brasil.

O que sei é que Raimundo Jesús é agora integrante da nova sociedade dos poetas vivos, nascido sob a aorta superior do coração paulistano, um amigo à toda prova, nascido para dias mais infinitos, mais transcendentes, mais fantásticos, não importa a distância onde tudo isso estiver.

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